Se Shakespeare soubesse o tanto de análises geopolíticas que começariam com “O mundo é um palco, E todos os homens e mulheres não passam de meros atores; Entram e saem de cena; E cada qual em seu tempo representa diversos papéis”, teria repensado a decisão de escrever Como Gostais. Recuso-me a recair na fórmula. Ou ainda: too late or not too late? Só mais um exame em loop. A menos que... recomecemos do zero. Reset.
Reset. Senhoras, senhores: reset. Aperte, menina, isso, com força. Esprema com carinho. Não funciona? Tilt? Chamem um técnico. Ou sigamos mesmo assim? Tentemos. A urgência requer medidas extremas. Abram-se as cortinas.
As redes sociais, já perdidas em meio à polarização político-sanitária, entraram em pane com a nem tão nova polarização geopolítica entre Rússia e OTAN, o povo ucraniano (para variar) no meio. Houve até quem discordasse em tudo de Bolsonaro a vida toda e passasse a concordar justo no ponto mais nevrálgico e narcísico de Messias: o fascismo de Putin. Sim, evidente, houve quem concordasse com o fascismo da OTAN. Poucos foram os Gabrieis Boric. Vários os canceladores. Vou, porém, abster-me de analisar a plateia para focar no espetáculo debordiano em si — sim, faz-me rir, Bolsonaro quando muito é figurante, mas vamos deixa-lo na plateia por ora. O louco de palestra. Nosso idiota funcional. Aqui, o voluntário que o mágico chama ao palco para tirar-lhe urina dos ouvidos. Ou fezes do nariz. Tanto faz.
De igual modo, vou me abster de tecer maiores comentários geopolíticos. Já os temos aos montes e, no fim, em uma hora e meia, qualquer pessoa pode se tornar expert no assunto com o documentário Ukraine on Fire, de 2015, Oliver Stone na produção-executiva.
Abstenho-me, portanto, de comentar sobre o início do conflito há trocentos anos, sobre o comediante Volodymyr Zelensky ser, desde sempre, próximo a várias figuras políticas norte-americanas; abstenho-me de responder à indagação logo no cartaz da película, “agressão russa ou interferência yankee?”, o simbolismo das/nas ruas, só mais um golpe. Abstenho-me.
Vou me abster até de maiores delongas sobre atores já bem conhecidos do público, de novo em cena, qual George Soros, quem, evidente, criou uma fundação na Ucrânia “antes que se tornasse independente da Rússia”, ou sobre rostinhos novos como Elon Musk, quem vem garantindo o acesso à internet na terra de Stepan Bandera. Não. Que toquem suas filantropias em paz por ora. Por hoje: abstenho-me.
Hoje, sinto-me na obrigação de abrir bem os olhos contra o holofote que andam esfregando em nossas caras, uma palavrinha que poucos conheciam para além das revistas teen e das paradas da Billboard, e tantos ainda se permitem ignorar, a “opção nuclear”, a grande carta na manga: a famigerada SWIFT.
“Não gosto de musicais pop”
Calma, Twitter. Aqui, a música é clássica. Variações Goldberg, de Bach, na interpretação de Glenn Gould. Loop às avessas. Aumenta-se o volume da trilha sonora. Não é de hoje que se discute, nem sempre de modo alarmante, sobre a possível expulsão da Rússia do equivocadamente descrito como um sistema de pagamentos, quando tão somente entrega mensagens, a Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), que envia “cerca de 40 milhões de ordens de pagamento a 11,500 bancos e outras instituições financeiras todos os dias.” Primeiro calcanhar de Aquiles, portanto: liquidez, ou a falta dela. Não é de hoje, tampouco, que se discute sobre o viés tirânico do sistema, centralizado nas mãos de cinco dedos cada, enquanto instrumento de coerção econômica. Dois calcanhares à mostra e cada vez mais vulneráveis — mas, isso, ninguém discute, ninguém vê. Pois vejamos.
Para começo de conversa, hoje, a Rússia tem o System for Transfer of Financial Messages (SPFS), plataforma própria que começou a ser desenvolvida em 2014, quando o país anexou a Península da Crimeia e a primeira ameaça de exclusão da SWIFT foi esboçada, e que já conta com mais de 400 instituições bancárias. Embora com certas limitações e desvantagens, o Império Putiniano não está sozinho nessa. A China de Xi Jinping também vem desenvolvendo, faz tempo, uma alternativa ao SWIFT, o Cross-Border Interbank Payment System (CIPS).
CIPS que, por sua vez, segundo o Financial Times, “também começará se valendo do SWIFT para mensagens interbancárias, mas eventualmente o sistema terá a capacidade de operar de forma independente (...) No futuro, o CIPS moverá no sentido de se valer da própria linha de comunicação. A essa altura, poderá substituir totalmente o SWIFT.” Isto, em artigo de 2016. Pouco mudou de lá para cá, certo?
Muito pelo contrário. Preparem-se para mais siglas. O CIPS integra o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Em pouquíssimas palavras: rival direto do hegemônico Banco Mundial. Longe de ter apenas membros asiáticos em seu rol, o AIIB já contava com Reino Unido, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Israel, Emirados Árabes, entre outros — inclusive Rússia —, quando resolveu aprovar a entrada de novos membros: Canadá, Bélgica, Irlanda, treze no total. Isto, em 2017. Hoje, são 109 países-membros e outros dezesseis na agulha.
Durante a pandemia, o AIIB teve papel fundamental no auxílio a países emergentes. O Brasil, aliás, oficializou sua participação como membro em setembro de 2021 e espera receber US$ 350 milhões de empréstimo, ao todo. Uma das bandeiras do AIIB é “encorajar nações a fortalecerem suas moedas, em especial aquelas cujo acesso ao Dólar é limitado”. O principal objetivo, diga-se, é justo tornar o Yuan forte o bastante para fazer frente ao Dólar na economia mundial. Para tanto, a China logo tratou de criar sua moeda digital. Gravem bem essa sigla: CBDC. Central Bank Digital Coin, ou Moeda Digital do Banco Central. Um “Bitcoin dos Bancos Centrais”, para leigo entender. Não se fala de outra coisa nos bastidores, e nem é de hoje. Em breve, não se ouvirá sobre outra coisa também nos picadeiros. Brasil já prepara a sua. Faltava só uma lei que regulasse as criptomoedas no país. Não falta mais. O projeto está pronto e aprovado. Agora é com a Câmara dos Deputados. De olho nos BRICS.
Só mais um dos atores globais do Ocidente a aderir, até tardiamente, à “tendência” que se pôs em marcha plena logo no comecinho da pandemia, na surdina, a exemplo das discussões no Comitê Bancário do Senado dos EUA sobre a criação do Dólar digital. Coin-cidência? Não existem coincidências no sistema financeiro mundial. Sobrevivência é o que há. A lei do mais forte.
Há também uma velha e (des)conhecida lenda urbana: assim como, segundo Sartre, a existência precede a essência, também os gráficos precedem a narrativa. No caso em análise, não foi diferente.
Por uma fogueira com um punhado de dólares
Num discurso hoje clássico perante o Parlamento Europeu, em 2013, o ex-Eurodeputado Godfrey Bloom atirou para matar: “Todos os bancos estão quebrados. (...) E por que estão quebrados? Não se trata de um ato divino, não se trata de algum tipo de tsunami. Estão quebrados porque temos um sistema chamado reserva fracionária. O que significa que bancos emprestam dinheiro que, de fato, eles não têm. É um escândalo criminoso e já vem acontecendo por tempo demais. (...) E a maior parte do problema começa na política, nos bancos centrais, que são parte do mesmo sistema político. (...) A impressão artificial de dinheiro, o que, caso qualquer pessoa comum fizesse, a deixaria na cadeia por um bom tempo. Ainda assim, governos e bancos centrais fazem isso o tempo todo. (...) Aí, quando os bancos quebram por conta da própria incompetência e chicanice, são os contribuintes que pagam a conta.”
Pena que o tiro saiu pela culatra e 2014 acabou sendo seu último ano no mandato. Nada, todavia, que desabone a mensagem. Ao contrário.
Só no primeiro ano de pandemia, durante o Governo Trump, o FED imprimiu 40% dos dólares em circulação, como se não houvesse amanhã. Mas amanhã chegou. E, não satisfeito, Biden dobrou a aposta, anunciando quase quatro trilhões em investimentos. Resultado: dos já absurdos 40%, a boiada estourou para inacreditáveis 80%. Nos últimos dois anos. Em miúdos: crise à vista. Aqui: sobra liquidez, mas falta “lastro”. No que pode ser o maior colapso financeiro mundial desde 1929. Junta com duas ou três guerras, mais um novo desdobramento inesperado da pandemia, e estrago feito. Quem há de salvar nossa pobre economia? Qual narrativa? Padrão-ouro de volta? Bitcoin?
Como já dito, o atual sistema monetário global é bastante centralizado, seja na figura da SWIFT ou na hegemonia do Dólar em si como reserva de valor mundial. Rússia saindo da SWIFT pode apenas acelerar o que parece ser inevitável. E como o mundinho capitalista sobreviveria em tal cenário? Entram em cena justo as CBDC’s. Mas não apenas. São vários os novíssimos atores da aldeia global capazes de fazer a intercambiação de uma CBDC a outra: Corda, R3, ODL (On-Demand Liquidity), SBI Holdings, afora um mundaréu de DeFi’s, tantos unicórnios num arco-íris só... Não à toa, aliás, o CEO da californiana Ripple, Brad Garlinghouse, já virou arroz de festa em eventos da “elite globalista” (perdão, mil vezes perdão), desde a National Bank Conference, em 2019, junto a figuras tão importantes quanto Christine Lagarde — ex-diretora do FMI e atual presidente do Banco Europeu — ao Fórum Econômico Mundial. Bem-vindos à era da Internet of Value (IoV). E a ainda mais controle sobre o que compramos, como nos comportamos etc. Assunto, quiçá, para um futuro artigo.
Em suma: adeus monopólio da SWIFT. Já não era sem tempo, a bem da verdade. Ainda que mais do mesmo, só um tabuleiro novo para velhos peões. E todos, vejam bem, todos os atores envolvidos conhecem bem a trama. Vide o “escândalo criminoso” de Bloom.
Mas como sairão dessa impunemente, vocês se perguntam? Como abafar sucessivos escândalos à vista? Unir o útil ao oportuno, pular de narrativa em narrativa até o objetivo final? Robert De Niro e Dustin Hoffman ensinam: o rabo há de balançar o cachorro. Entra em cena o Quinto Poder. Quanto mais emoção, mais ânimos acirrados, mais desinformação institucionalizada em meio ao caos naturalmente instalado, melhor para cativar o público e manipulá-lo na direção que se bem entender.
[Adendo: exemplo disso foi o “risco de acidente dez vezes pior que o de Tchernóbil”, quando, na verdade, 1- a usina não está ativa; 2- o reator é do tipo VVER e não RBMK, como o de Tchernóbil.]
Tanto mais escandaloso, tanto mais criminoso, quando figurantes precisam morrer de fato, os peões da narrativa, a fim de que o roteiro se concretize em película. Ou quando um Deus ex machina entra em ação e a situação simplesmente foge do controle.
A culatra de Putin e os cães de Xi
Talvez coin-cidência, fato é que, no último ano de Bloom no Parlamento Europeu, outro tiro parece ter saído pela culatra pelas plagas de lá. Conforme o Globe and Mail bem aponta: “O SWIFT funciona em ambas as direções. Os bancos almejados não seriam capazes de fazer pagamentos, mas também não seriam capazes de receber pagamentos. Tal cenário apavorou países europeus que importavam um tanto do gás russo, notoriamente Alemanha e Itália.”
Antes, o gás (ainda). Ora, os diamantes. Um porém: como já vimos, isso não é mais problema hoje. Hoje, afinal, ninguém mais precisa de fato do SWIFT. Foi a própria Taylor quem ensinou: descentraliza, fia. Itália acabou abrindo mão dos diamantes via SWIFT. Sabe ter um CIPS que lhe acuda. Por menor que seu volume ainda seja, criar caso para quê? Que venham as expulsões da SWIFT, da FIFA, do Clube de Bingo, do condomínio — quanto mais cartões vermelhos, mais fácil de se justificar o porquê de tais medidas nunca antes terem sido adotadas contra outros países. A começar por Israel. Ou mesmo os EUA.
Não à toa, a China encheu o peito dia desses, toda autoconfiante, para arrotar sem o menor pudor à mesa digital os bombardeios, sabotagens e (tentativas de) golpes realizados pelos EUA nos últimos oitenta anos. 69 no total. Ainda goza na/da nossa cara. Brasil, bonito na foto, bicampeão. Tudo em nome da “democracia”. Como defender? Quincas, ao menos, era fanfarrão assumido.
E qual o protagonista de A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, novela do baiano Jorge Amado, a economia norte-americana foi dada como morta, mas insiste em aparecer sorrindo no próprio velório. Causas naturais não lhe fazem jus, afinal. O Velho Império preza pela dramaticidade, pelos efeitos especiais hollywoodianos, o cadáver faz questão de encenar a própria morte com ares triunfais. Um caixão é pequeno demais para Kong. Que morra em meio às grandes ondas de liquidez do Novo Mundinho Cripto. E parece não haver nada que Biden possa fazer, além de ladrar.
De resto, para não dizer que não falei de geopolítica — limpo a garganta —, concedo a palavra a Noam Chomsky de uma vez: “A pergunta que nos devemos fazer é: por que a OTAN sequer continuou existindo depois de 1990?” Que bata em retirada duma vez com a SWIFT — cabeça erguida, mantendo a pose enquanto há tempo (perdão).
Difícil, entretanto, que o mesmo valha para Putin. A retirada, no caso. Que siga literalmente em paz com sua existência, são os sinceros votos do autor.
Pista disso foi o encontro, praticamente visita, entre Biden e Putin em junho de 2021, em Genebra. “Fiz o que vim para fazer”, declarou o Democrata à imprensa, sem fornecer grandes detalhes sobre a conversa na qual teoricamente se tratou a respeito da intervenção russa nas eleições norte-americanas. Os tais — abaixa-se o volume — hackers. Só não mais icônico do que o “Putin vai pagar por isso” de três meses antes. O sol se põe em loop.
Alguém teria coragem de perguntar?
Sem recair no reducionismo “todo russo joga xadrez”, fato é que Putin se mostra um baita enxadrista político. Planeja seus passos com o máximo cuidado, leva o tempo que for necessário. Ao contrário da plateia nas redes sociais, sempre intempestivas, o presidente russo ensaia exaustivamente cada fala, cada movimento que fará em cena. Sempre soube quais seriam as consequências (o que, em corroboração, descartaria um recuo). Bem como seus pares internacionais que, ao ameaçarem excluir a Rússia — décima primeira economia mundial e maior potência nuclear — da brincadeira do lado de cá, sabem bem qual será o desfecho e já estão devidamente alinhados do lado de lá, só esperando um OK para girar a alavanca. Inclusive o cão que mais ladra. Reitero: não há ingênuos no poder, só nas redes sociais mesmo.
Nada, porém, justifica um conflito armado. Mas quem somos nós para apitar em alguma coisa? Há quem tema que China siga pelo mesmo caminho. Indeed, cães começam a balançar — ainda se recuperando de um Long Covid. Haverá diplomacia que nos salve do confabulado na coxia? Quais papéis caberiam a cada ator, dentro e fora dos palcos? Aos peões da figuração, um sorriso no rosto? E aos hackers de plantão? Uma ciberpandemia a caminho? Já pensaram se derrubam o SWIFT de vez? Terceiro calcanhar de Quíron: cibersegurança. Não olhem para mim. Foi o próprio Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, quem “alertou” (faz-me gargalhar) durante o Cyber Polygon, evento promovido pelo FEM em 2021: “Nós todos sabemos, mas ainda não damos a devida atenção ao cenário assustador de um ciberataque global”, que, em suma, arruinaria o sistema financeiro, bancos, “hospitais, nossa sociedade como um todo”. Exala virilidade. Nova profecia, a exemplo do Event 201, em 2019? Ou apenas um chiste para corroborar a “coin-cidência”? In plain sight.
Tentamos, caro Schwab, tentamos.
Quem sabe, um dia, experts mundo afora não consigam desvendar (ou admitam que sempre souberam, numa súbita mudança de narrativa) o real contexto da peça em curso? O enredo geopolítico pode ficar a cargo da imaginação de cada qual (erros são permitidos). O financeiro parece estar dado. Faz tempo.
Até lá: a luz se esvai, fecham-se as cortinas.
Da plateia, uma garota de nove anos consegue entrever um fio de náilon, esticado e penso do teto, reluzir no escuro.
Tenta mostrá-lo aos pais, que a ignoram. Deixam o camarote em silêncio.
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything.
A menina olha por trás dos ombros. I’s on the prize.
Fim do segundo ato.