Julho de 1994. Baggio perde o pênalti. Brasil tetracampeão. Enquanto Galvão se esgoela na TV, um jovem de 13 anos recém-completos e já autointitulado anarquista após o suicídio do grunge, diante do frenesi ufanista sem pé nem cabeça em meio ao caos da soberania esburacada de uma rua sem asfalto nem saneamento básico, resolve colocar seu amplificador na janela do quarto, plugar um microfone em vez da guitarra, catar a primeira bandeira verde e amarela que encontra pela frente e fazer o que acabaria se tornando uma de suas especialidades: provocar patriotas. Fumante havia poucos meses, o jovem cata seu isqueiro, tasca fogo na bandeira e passa a gritar palavras de ordem e chacota contra a pátria de chuteiras ao tempo em que tremula o símbolo nacional em chamas. Eureka: um vizinho de bairro me caguetou e a polícia foi bater lá em casa. Ainda levaria quatro anos até minha primeira detenção, não foi daquela vez. Amadureci rápido e o suficiente, também, para deixar de lado infantilidades piromaníacas. O orgulho (besta) de nunca ter vestido uma camisa da seleção, no entanto, perdura até os dias de hoje. Já o disse e repito: soberania, aqui, ao contrário do que julga Carmen Lúcia, e de acordo com o artigo primeiro da CF88, a qual Carmen Lúcia deveria ser guardiã: só do povo, de quem “todo poder emana”, dos duzentos e treze milhões de pequenos soberanos tiranos que teimam em sobreviver entre leptospirose e outra num corredor do SUS.
Em suma, para ficar no poema de Bruna Beber publicado em coletânea homônima (embora com menos vogais), de 2016: “GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLPE”.
Detesto ter de me repetir. Detesto. Quanto mais num projeto literário em que capítulos deveriam se contrapor, complementando o que antes fora dito, e não recair num loop labirintístico de uma nota só. Prometo tentar, portanto, ser mais Bach em suas variações, menos Alexandre em seus abusos. E, sobretudo, tentar ser breve. Tic tac. Dez dias. Dez pontos:
1. A começar pelo Brasil: Jair Bolsonaro deu, sim, um golpe de estado. Golpe consolidado, não mera tentativa. O único golpe de fato levado a cabo no país desde a redemocratização. O golpe constitucionalista de 2016. Soft coup dado por Michel Temer e pelo Congresso com a corda no pescoço. Com Supremo, com tudo. Para estancar a sangria. Sangria de ferida aberta pela golpeada em questão, Dilma Rousseff, quem deu carta branca à polícia federal e a cabeça de Luiz Inácio numa bandeja no célebre telefonema do “tchau, querida” aos 17 do segundo tempo da prorrogação. No mais, sigo dando algum crédito aos três ministros (que ainda restam) indicados por ela: Fux, Fachin e Barroso. Entendo bem os dilemas e conflitos do último. Mas garanto, meu caro Luís Roberto: não é o caminho. Em nome dos tempos de embates com Gilmar: abra os olhos. Também erramos. E como erramos. Não há vencedores entre nós. Perdemos todos. Todos manés. Humildade não se confunde com subserviência. Nem manicures ou trabalhores sem-terra com terroristas.
2. Sim, não faltaram abusos de autoridade na Lava Jato, em especial contra Luiz Inácio. Abusos que poderiam ter sido sanados em ação individual, conforme estava previsto para acontecer. Até que resolveram, a uma semana do julgamento, misturar alho com bugalho e julgar todos os casos num só: prisão em segunda instância. Livrou-se Luiz Inácio e a esquerda, inebriada, deixou a boiada passar sem dar um pio. Tantos poréns: os abusos, antes cometidos em primeira instância, sanados em última, hoje não apenas são potencializados ao cubo pela mais alta corte do país, como reproduzidos pelas instâncias inferiores à guisa de jurisprudência aos quatro cantos da Soberana. Escritores estão sendo censurados. Jornalistas, condenados a pagar fortunas. Veículos de comunicação, perseguidos. O judiciário, que sempre foi dos poderes o mais próximo da população, no sentido de interferir nas causas práticas do dia a dia, e sempre favorecendo quem mais bem pagasse no balcão, virou um Uber Leviatã sem controle – e rechaçado por 80% dos tiraninhos. Tão soberanos que 60% simplesmente têm medo de expressar suas opiniões. Não, não temos uma first amendment, fato. Nem precisávamos. Costumávamos ter cláusulas pétreas. E como quase nenhuma de fato saiu do papel, vamos zoar com a única que ainda se impunha.
3. Embora Jair Bolsonaro tenha participado do golpe de 2016, não passava então de mero figurante, alvo das chacotas de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol no grupo do Whatsapp, na falta de um caso concreto de corrupcão – e, acreditem, podem acreditar, isso pesa bastante na balança popular, bem mais que qualquer atrocidade (e haja atrocidades) que possa sair da boca do sujeito e machucar nossos ouvidos pequenos-burgueses. Entre um ficha-limpa que só fala absurdos com ou sem improviso e um ficha-suja que só fala absurdos ao improvisar, não há de ser uma tornozeleira a desbalancear a conta. Muito pelo contrário. Nessa, o figurante acabou protagonista. Sigo abominando o cidadão pelo simples uso de farda. Ustra nunca foi modelo de liberdade para ninguém que de fato prezasse por liberdade. Nem Stalin. Paciência. Há, porém, quem goste de fardas. Há quem goste de togas. E assim caminha a humanidade. É com argumentos que poderei convencer um ou outro a sair correndo pelado comigo por matagais afora. Não esfregando minhas partes íntimas à força em A ou B num metrô lotado. Com amor à palavra, sem estupros intelectuais.
4. Alexandre de Moraes não foi parido por um buraco negro que se abriu na Chapada dos Veadeiros em 2019, conforme fazem crer os bolsonaristas. Muito pelo contrário. Conquanto Bolsonaro tenha sido mero figurante em 2016, Moraes foi protagonista – ainda que com máscara de ferro, calva exposta. Um fascista criminalizando os movimentos sociais que se insurgiam ao golpe, segundo Boulos, “fazendo genocídio, matando, exterminando a juventude negra”. Enquanto Secretário de Segurança de São Paulo, as mortes causadas por policiais cresceram 25%. De motocicletas e viaturas a tanques de guerra isralenses e Robocops, tudo virou arma nas mãos de sua força policial contra a resistência e a periferia. “…várias conquistas e consensos mínimos sobre direitos humanos são colocados à prova o tempo todo. O Supremo já está disposto a atuar por uma opinião pública amedrontada e sedenta por punição, Moraes tem condições de ser o ministro que vai assumir esse jogo internamente”, afirmou à época Frederico de Almeida, professor do departamento de Ciência Política da Unicamp, à Carta Capital, que comparou Moraes a “um delegado à frente de uma ação policial”. Adorava uma entrevista. Salvou Marcela do exposed. Até videozinho tosco (e isso repito com gosto: vai ser tosco assim lá na caixa prego do Tucumã) na fronteira com o Paraguai, semiacocorado entre pés de maconha que mal era capaz de decepar com um facão cego, ele fez. Quase um Rambo pós-quimio. Mas parido por um buraco negro em 2019: não foi. A menos que consideremos Temer a expressão máxima de um buraco negro, vá lá, ainda assim, Moraes chegou aonde está em 2016. Primeiro, como Ministro da Justiça. Em 2017, ao STF. Peça-chave para estancar a sangria, portanto. Fundamental a ponto de abrir-se uma vaga só para o moço – às custas de um ministro de Dilma. Não é todo mundo que tem cacife para indicar o Comandante do Exército, vejam bem. O que deveria ser prerrogativa exclusiva de uma só pessoa, ocupante de um cargo bastante específico.
5. Aí, veio 2018. Plano A, Contraplano B, aquela velha história. Na falha do Plano A, entrou em cena o Plano M – de merda no ventilador. E como todo bom porco adora chafurdar na merda, não faltaram porcos voando pelos ares de Brasília. O “tudo” acabou dos mais abrangentes e sempiternos vassalos (dos cursos de sindicalismo fake da CIA na Pennsylvania, passando pelas bençãos de Golbery e Tuma e Schwab, ao recém-assumido neoliberalismo de Reagan e Thatcher [que fim triste {embora mais que esperado}]) ressurgiram das cinzas para dar aquele verniz de legitimidade ao golpe. Hoje, todos os rostos de 2016 seguem lá, todos, Plano A, M, até o Bessias, sob os holofotes do PIG ou nos bastidores, com exceção de apenas dois: a mocinha e o figurante (e o Aécio, oke). Ou foi o golpe mais rápido da história mundial ou nunca existiu ou, bué… ainda está em plena marcha.
6. Aí, em 2025, veio Trump. O grande paladino da liberdade de expressão não tardou em perseguir estudantes pró-Palestina. Em cortar auxílios a universidades por conta de opiniões. Em passar por cima dos direitos e liberdades individuais de imigrantes ilegais e legais. Em miúdos, em fazer tudo o que havia prometido em campanha. Ou quase tudo. Guardadas as devidas proporções, Trump pecou justo no que não poderia jamais pecar, e o que, no fim das contas, acabou de fato o elegendo, a Picanha&Cerveja (trocaria a cerveja pelo Suco de Laranja + Picanha ao mercado interno, eis minha bandeira) versão MAGA: o America First e o caso Epstein (que já não é teoria da conspiração para democratas, ao que parece) – e, não à toa, ambos têm relação direta com Israel. Assunto para outra ocasião. Aqui, importa é: fronteiras, a grande obsessão de Donaldo. Modo tudo ou nada.
7. Pula para Filipe Martins. O ex-assessor de Bolsonaro preso por meses (dez dias na solitária) por ter fugido do país rumo à República de Curitiba. Só mais um caso de fishing expedition na PF de Schor. Ao que tudo indica, e segundo seu advogado, já temos o nome do suposto agente da alfândega norte-americana que fraudou a entrada de Filipe nos EUA para que o factóide ensejasse sua prisão. Ao que tudo indica, e segundo o advogado de Martins, parente de uma autoridade brasileira. Autoridade pode ser qualquer policial, pode ser um político, pode ser um juiz. Ainda não foi revelado. Ao público, evidente, já que, a essa altura, qualquer autoridade norte-americana com acesso ao caso, o que inclui o Presidente dos EUA, está a par de todos os mínimos detalhes. Tratados internacionais no lixo, cartas rogatórias pelo ralo, incompetência de foro – tudo pinto. Cantei a pedra há um ano, com direito a chapéu do Mickey para mau entendedor. ADENDO 23/7 — E já temos um nome: Adriano Oliveira Camargo, oficial de ligação da PF nos EUA, e irmão de um juiz de direito. O auxiliar de Moraes, ao que consta, exaltou-se em audiência quando o advogado de Martins questionou Shor sobre o cidadão. Que tivesse “cuidado", alertou.
8. Não contei, mas, observando de longe, ao longo de 2024 e 2025, só uma palavra saiu mais da boca de Luiz Inácio que “Bolsonaro”. Enquanto seu governo andava para trás num remake de De Volta Para o Passado onde as personagens da rampa de 2023 sumiam da fotografia de Stuckert conforme as ações do Presidente destruíam seu legado (e, conforme o próprio salientou dia desses, 99% de tudo que enviou ao Congresso foi aprovado, logo: cortes na Saúde e na Educação, cortes no BPC, cortes nos programas sociais de modo geral, cortes no combate ao desmatamento, afora o corte total e absoluto na contagem de yanomamis mortos, e por aí vai, tudo proposto pelo Governo — isso para não falar dos bancos, como se bancos precisassem das esmolas do Pix num Governo Luiz Inácio, quanto menos na iminência do Drex), sobrando-lhe apenas o vira-latas caramelo, Luiz Inácio fez de tudo para chamar a atenção de quem fazia questão de ignorá-lo. Fez tanto por onde, de nazista a fuck you, que bastou um empurrãozinho maroto de Xi Jinping (“bora lá tu sozinho”) para que a pressão saísse um pouco das costas chinesas e recaísse toda sobre as nossas — ou, pelo menos, multiplicada por cinco. De lambuja: nossa soberania, ou o que sobrar dela, por um punhado de yuans.
9. Bananinha e Paulo Figueiredo já deixaram bem claro que há uma estratégia e tudo está mui bem precificado nas ações dos EUA. Em outras palavras: já pegaram os oitos pontos anteriores e montaram o quebra-cabeça todo enquanto, no Brasil, ainda há quem pense ter sido tudo pelos 20 centavos. Contam com apenas dois fatores para seguir escalando a situação: “que Moraes siga dobrando a aposta e que Luiz Inácio siga fazendo barra falando merda”. Parabéns aos estrategistas. Pobre de quem, por inocência ou desfaçatez, ainda dá algum crédito real aos dois primeiros ou ao figurante eleito protagonista da várzea por qualquer coisa que esteja acontecendo e virá a acontecer – todos sabemos, ou já deveríamos ter nos dado conta, nem começou. Trump nem sequer citaria Bolsonaro em sua cartinha caso desse a mínima para o capitão de chumbeta. Não dá. Só mais um instrumento de “negociação”, só mais um peão. Sabia bem o que aconteceria como consequência da bravata: Moraes dobraria a aposta (mais uma vez, contra a liberdade de imprensa — parabéns aos envolvidos, mas… até quando?), Bolsonaro que se dane, e Luiz Inácio… bem. A corda é serventia da casa. Enviada pelos EUA, sim, mas Made in China.
10. Mesmo para alguém como eu, portanto, que não acredita nem sequer em fronteiras quanto menos em soberania senão a popular e, neste caso, de um só povo, o latinoamericano, quem ulteriormente cá estava antes da invasão europeia, de seus descendentes, fica fácil ligar os pontos e entender como isso tudo começou, onde vai dar e, sobretudo, quem vai pagar o pato com molho de laranja enquanto ardemos todos ao som de harpa. Porque não, caros bolsonaristas, não vivemos numa ditadura desde 2019 mas vocês são parte disso, sim. E não, caros petistas, não há tentativas de golpe a cada quatro anos nem golpistas se tornam bastiões da democracia da noite para o dia, quanto menos praticando atos mil vezes mais autoritários que os outrora denunciados à União Europeia e ao Tio Sam (e com pedidos de sanções, sim), três fascistas não fazem um democrata, e vocês também são parte disso, afundados até o pescoço. Tampouco vocês, caros liberais, são de esquerda só porque cheiram cocaína ouvindo Charlie Parker num bacanal com tamagotchis naquela cobertura do Leblon (até aí: nada contra, tudo a favor), e são sim os principais responsáveis por todo esse incêndio, e que se dane o povo, sempre. Passando da hora de cada qual se enxergar no espelho pr’além da idealização pueril. Luiz Inácio está prestes a morrer no banheiro. Bolsonaro está prestes a morrer na prisão. Os fantasmas dos dois nos assombrarão pelo próximo século. E apenas um grupo, em teoria alheio a ambos, seguirá se beneficiando disso.
Dito o quê: soberania, claro, como não? Resta saber... de quem?
Julho de 2025. Que não tarde o eureka de Narciso.
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PS: O Jabuti é cego mais não é tolo.
PPS: Para o espanto de zero pessoas na redação, a CIA estaria envolvida no caso. A essa altura, FBI e ICE também, aposto. E, em breve, a Interpol.
PPPS: Ao que parece, Luiz Inácio perde no truco até para Maduro. A Venezuela acabou de ignorar o acordo comercial com o Brasil e enfiar 15% a 77% de tarifa na farinha, no cacau e na margarina de painho. Sempre bom lembrar: truco não vai até seis, Luiz Inácio, mas doze. Que fase.