Being against evil doesn’t make you good. (Ernest Hemingway)
Confesso não ter acreditado quando o dev e amigo Thompson Marzagão enviou, em nosso grupo de nerds no Telegram, Doidx Pontx Firme (dissidentes da Poplist), a imagem do algoz de Trump debruçado sobre um telhado à vista de todos. “Isso é sniper”, argumentei, “ninguém seria tão burro”. Ninguém, no caso, nem alguém disposto a cometer uma sandice daquelas nem e quanto menos o serviço secreto. De fato, não bastasse Thomas Crooks estar praticamente na mesma linha do horizonte dos snipers no telhado do prédio a cento e tantos metros de distância, três civis (até o momento) afirmam ter alertado agentes de segurança sobre a presença mais que suspeita. Evidente, as boas práticas recomendam que haja uma confirmação quanto a se tratar de uma arma, e não de um brinquedo ou um cano, antes de atirar. Desde que a confirmação não seja o tiro em si.
Mas veio o tiro. “Fight. Fight. Fight.” E me recusei a acreditar no festival de aberrações que se seguiu. A começar pelas manchetes de “supostos disparos” e “caiu do palco” ainda no ar mais de hora após o atentado quando, fosse com Biden, teríamos “um ataque terrorista contra a democracia” – publicado cinco minutos antes do primeiro estampido. O “facada aqui, tiro lá”, além de insinuar a maior teoria da conspiração possível (vou tatuar), foi só a cerejinha podre nesse bolo de estrume. Ou não? Afinal, Trump é lunático o suficiente para aceitar o papel de Joan Vollmer e confiar em um William Burroughs qualquer que lhe acertasse em cheio a escafa – ou, infortúnios do existir, o meio da testa. Se um não foi capaz de fazer as vezes de William Tell – culpa de Vollmer, evidente, que, chapada de benzedrina, deve ter se mexido, oras –, o jovem Crooks foi lá e, conspiracionistas dirão que assombrado pelo fantasma de Claus Schenk Graf von Stauffenberg, mostrou como se faz. Fora que, no caso de Trump, o risco – sua vida literalmente por um fio do topete – com máxima certeza valeria a recompensa – não juras cafonas de amor e os aplausos da nata beatnik, mas...? Ultrapassar Biden na corrida presidencial? Até faria algum sentido por mais torto. Se Trump já não estivesse na dianteira como franco favorito e seu adversário conseguisse articular mais que cinco palavras antes de se catatonizar ou conferir a presidência da Ucrânia a Putin. Fosse eu, no mínimo, teria escolhido alguém com mais de trinta anos. Sei lá. Tampouco postaria a foto de um troll se passando por Crooks em um “perfil jornalístico” como se fosse o próprio. Mas o Metrópoles publicou e lá está até agora. O errado da história sou eu, capaz. Ou o troll.
Com tantas teorias da conspiração partindo da própria imprensa tradicional em meio a tantas (des)informações desencontradas, era de se esperar que o povo seguisse pelo mesmo caminho. E lá desenterraram o comercial da BlackRock em que Crooks aparece (aos 19s). Logo: dedo do Larry Fink nisso. Riso? Minha primeira reação ao saber do ocorrido, e já com teorias mil pipocando nas redes, foi publicar a seguinte nota no protocolo Nostr, menos de meia hora após os disparos: “Se você escuta mil vezes que Hitler tem de ser detido, nem precisa ter problemas mentais pra acordar belo dia e decidir que você será a pessoa a detê-lo. Mas, ok, que comecem as teorias da conspiração. A minha diz que Biden será o próximo alvo – e pra valer.”
Antes de me comprometer desenvolvendo a tese e correndo o risco do FBI bater a minha porta em um futuro próximo, porém, é chegada a hora da já clássica digressão em que acabo me comprometendo ainda mais. Pincelemos sobre nazismo.
Dias de destruição, dias de revolta
Deixemos a facada de fora. O que Donald Trump, Robert Fico e Shinzo Abe têm em comum? Além de, evidente, terem sofrido atentados nos últimos dois anos. Todos de direita? Não. Fico, primeiro-ministro da Eslováquia, é um social-democrata, ex-comunista. Sobreviveu, em maio, a cinco tiros disparados por um “lobo solitário” de 71 anos, poeta, fundador de um partido “contra a violência” e membro da Associação de Escritores Eslovacos. Todos sobreviveram, então? Não, não, não. Abe, já fora do cargo de primeiro-ministro, não teve tal sorte e foi assassinado em agosto de 2022 por um desempregado de 41 anos que se valeu de uma arma caseira feita com dois canos (se liga, serviço secreto) e fita isolante. Próxima tentativa: todos os atiradores eram de esquerda, pelo visto? Há controvérsias. O assassino de Abe, sim, fã assumido de Che Guevara. O lobo eslovaco, todavia, embora poetinha da paz, era nacionalista (até aí, Aldo Rebelo também) e pouco ainda se sabe sobre Crooks – filiado ao Partido Republicano, fez doações aos Democratas. Talvez. Mas, afinal, o que Fico e Abe têm (ou tinham) em comum com Trump? Acertou, parcialmente, quem disse “a grande mídia no encalço”. Estrelinha na testa só para quem pontuou que os três são (ou eram) contra as atuais políticas da OTAN, logo: pró-Rússia. Uma das razões principais, aí sim, de terem a mídia no encalço. Fascistas, negacionistas, populistas, antivacinas, antidemocráticos, anticristos. Tudo Hitler.
Até tenderia a concordar. Mas Hitler é assunto sério demais para um semita mezzo libanês mezzo sefardita que nem eu, anarquista ainda por cima. E não estou ciente de campos de concentração, hoje em dia, além de Rafah e dos uigures – sobre os quais quase nada se fala e, por muito tempo, só mais uma teoria da conspiração. Muçulmanos. Repita comigo: se-mi-tas. Que têm outro algoz bem conhecido de todos: o Regimento Azov, legado de um nazista histórico da Segunda Guerra e herói nacional da Ucrânia, Stepan Bandera – recentemente homenageado “por engano” no Parlamento canadense. Só mais uma “gafe”, segundo a imprensa. Lubrificar balas com banha de porco contra soldados chechenos? Wolfsangel? Baita gafe, hein? Nazista, nazistinha mesmo, quem inclusive fez a Deutscher Gruß após ser baleado no Universo Paralelo 247, só Trump. Apesar de ser Biden quem financia tanto a Ucrânia quanto a OTAN do finado General Heusinger (que o diabo o tenha), além do genocídio em Gaza. Que reste claro: eu jamais votaria em "Comrade Jianguo" (建国同志 [Comrade Build-Country, Camarada Construir-País], como Trump é chamado nas redes sociais chinesas), assim como jamais defenderia as atrocidades cometidas por Putin quanto menos por Stalin (sim, o mesmo que firmou o Pacto Molotov-Ribbentrop com o Companheiro Adolf antes deste mandar o acordo às favas com a Operação Barbarossa – passe pano à vontade, nada mudará a história). Daí a não reconhecer quem são os discípulos de Hitler na conjuntura geopolítica… só sendo muito alienado ou corrupto. Ou, quem sabe?, nazista. Falta só defender experimentos científicos em cobaias humanas para fechar o pacote.
“Ok, e se não votar no Trump nem no Biden, vota em quem, então?” Bem, sempre temos um Krist Novoselic. Mas, vamos lá, uma charada básica. O que é, o que é: manipulado pelos meios de comunicação, também conhecido como “gado”, cujo destino foi outrora cantado por Wilson das Neves, mas que ainda se limita a sobreviver entre ponta e outra de uma falsa polarização criada por quem planta o caos para colher controle, centralização, autoritarismo e lucro, lucro cada vez maior às custas da exploração de seu suor, seus medos e suas esperanças, suas vidas? Parabéns a quem respondeu “o povo”. Passando da hora do povo deixar de acreditar em políticos que falam de amor ao pé do ouvido para acabarem estuprando geral aos pés da cama. Deixar de acreditar em mitos, em salvadores, em dogmas, em demagogias, e passar a acreditar um pouco mais em si e no outro, no vizinho, em quem pega o ônibus lotado consigo às cinco da manhã. Passando da hora do morro descer, nunca houve carnaval. Mas descer de braços dados, não como inimigos para guerrear uns contra os outros. O voto é apenas um dos instrumentos da soberania popular. E não há soberania quando o povo é manipulado.
Há a lenda entre certos direitistas de que a frase “dividir para conquistar” seria de um suposto decálogo de Lênin. Aos direitistas que porventura me leem: não é. Aos esquerdistas que porventura estejam rindo, sabendo (espero) que se trata de uma máxima de Júlio César, não à toa o primeiro grande estadista da história, pergunto: estão rindo do quê, exatamente? Da ignorância alheia ou de nervoso, da própria hipocrisia? Aos jacobinos e girondinos de plantão: bem-vindos ao século XXI. Com a palavra, Chris Hedges, vencedor do Pulitzer, autor de Days of Destruction, Days of Revolt, em parceria com Joe Sacco, e velho socialista:
Nossas instituições democráticas, incluindo os órgãos legislativos, os tribunais e os meios de comunicação, estão reféns do poder corporativo. Já não são democráticas. Tal como os movimentos de resistência do passado, temos de nos envolver em atos de desobediência civil em massa e sustentada, especialmente greves e não cooperação. Ao voltarmos nossa ira contra o Estado corporativo, em vez de contra Trump, nomeamos as verdadeiras fontes de poder e abuso. Expomos o absurdo de culpar grupos demonizados como os trabalhadores sem documentos, os muçulmanos, os afro-americanos, os latinos, os liberais, as feministas, os gays e outros, pelo nosso fim. Damos às pessoas uma alternativa a um Partido Democrata falido – cujo candidato presidencial está em claro declínio cognitivo – que é um parceiro total da opressão corporativa e não pode ser reabilitado. Tornamos possível a restauração de uma sociedade aberta. Se não conseguirmos abraçar essa militância, que por si só tem a capacidade de destruir líderes de seitas, continuaremos marchando em direção à tirania.
Preciso dizer que o mesmo vale para o Japão, a Eslováquia, o Brasil? Espero que não. Pois, ao contrário do que o Estado corporativo quer que acreditemos, revolta e destruição sempre foram e ainda são os principais instrumentos da soberania popular contra os tiranos que controlam o legislativo, o judiciário, o executivo e o quarto poder para que estes manipulem o povo a acreditar, por exemplo, que limpar as privadas dos Democratas por US$ 2 a hora é o puro suco da democracia participativa. Tiranos quais Larry Fink, George Soros, Klaus Schwab. E o que mais os três têm em comum além dos bilhões e das almas caridosas? Assunto para a parte final da série As tantas aspas da Vanguarda. Digressões demais por hoje.
Cui bono?
Na esperança de ter dissuadido, de saída, os teóricos da conspiração que imaginavam ter sido uma encenação kamikaze armada pelo próprio Trump, concluamos. Hora de roubar o chapéu de alumínio da Cantanhêde e apresentar minha própria teoria: o caos como instrumento de controle. Senão, vejamos.
Se arriscar a própria vida contando com a mira de um adolescente já não nos parece lá um bom negócio para um candidato liderando as pesquisas, pergunto: a quem o atentado teria beneficiado? Biden? Alguém poderia me explicar como? Pois explico como não o beneficiaria em cenário algum. Cenário atual, o óbvio: Trump levou um piercing na orelha e sacramentou de vez sua vitória nas urnas, com direito a registro histórico que os netos e bisnetos e tataranetos de quem ora me lê (e os tataranetos daqueles) estudarão em sala de aula. Caso Trump tivesse morrido, no entanto, a história seria outra bem diferente e, ainda assim, Biden não seria reeleito. As ruas das cidades norte-americanas estariam neste momento um pandemônio só. Caminhoneiros arrastando trans pelos cabelos, trans respondendo com rajadas de balas (não faça essa cara de espanto, procure saber e pesquise, o movimento LGBTQIA+ vem – e com toda razão em meio à paranoia coletiva atual – se armando nos EUA [e Antifas idem], vide as Pink Pistols), caminhões atropelando todos pela frente. Lojas saqueadas, casas pegando fogo, a polícia tentando conter a confusão com mais violência, bombas caseiras explodindo tudo pelos ares. Se Biden não infartasse, seguiria sendo a marionete de praxe. Estado de exceção decretado. Caminho livre para os tiranos corporativos. Biden forçado a deixar o comando. De guerra civil à terceira guerra mundial (oficializada) em dois tempos. No mínimo, um DeSantis.
Não foi o caso. Cedo demais para se comemorar?
Biden que se cuide. As chances de um novo atentado contra Trump são ínfimas. Segurança devidamente reforçada. Já contra o velho Joe… nada como a Lei do Talião em um ambiente polarizado. A narrativa perfeita. Olho por olho, dente por dente, escafa por escafa. E, no caso de Biden, não haveria segurança possível pois não haveria segurança at all. Assim como não houve no atentado contra Trump e um atirador teve toda a liberdade e todo o conforto para expor seu amadorismo do alto de um telhado aos olhos de todos os presentes – menos do Big Brother. Não seria necessário nem sequer um disparo. Uma variante nova, quem sabe? Um empurraozinho escada abaixo e a saúde debilitada se encarregaria do resto. Obra de um trumpista, evidente. Segue o baile, Kamala assume e eleições no fim do ano? Claro, como não… toca o velório, fecha o caixão e palanque pronto. Imagina decretar estado de exceção só porque o presidente foi assassinado. Melhor esperar até que haja trans arrastando caminhoneiros pelas barbas, caminhoneiros respondendo com rajadas de balas, cybertrucks atropelando todos pela frente. Não? Queimar a candidatura de um substituto seria mais viável?
Conquanto tal cenário seja tão somente um exercício mórbido de imaginação e nada além, a realidade sobre a qual venho alertando há tempos se mostra mais cristalina que nunca: o caos em que apostaram os tecnofeudalistas vem pagando o devido prêmio. Tende a ser exponencial a cada nova aposta dobrada.
E atenção: nem percam tempo com dossiês sobre o “fascismo da cultura armamentista”. Nunca peguei em uma arma, bom deixar claro, e nem pretendo. Mas garanto que os LGBTQIA+ supracitados não são fascistas. Garanto também que a Revolução Cubana não se deu com estilingues e flores. E garanto com máxima certeza que não sou o único ciente disso. Não há coisa mais prazerosa que uma boa narrativa, sei bem, é minha maldição. Em livros de ficção. Na vida real, vale o pragmatismo. Nesta dimensão, pr’aquém da Linha de Karman, valem as Leis de Newton, objetivas, com pouco ou nenhum espaço para os relativismos quânticos. Encaremos a realidade.
Primeiro, de nada adiantaria proibir a venda de armas ou apreendê-las. Não sem antes derrubar a deep web ou proibir junto a venda de computadores, impressoras 3D, hardwares e peças soltas de modo geral – não faltam tutoriais na internet sobre como construir de um tudo a partir do zero. Nos anos 70, tínhamos (modo de falar, Sra. Abin, eu nem era nascido) o Anarchist Cookbook, do ativista antiguerra William Powell, os zines contraculturais xerocados nos centros acadêmicos e a incipiente cultura DIY. Hoje, temos os softwares e a filosofia DIY, ainda longe do ápice, em plena prática – seja através de um PC no porão do lar doce lar dos pais, seja através de um Firestick da Amazon em um quarto de hotel.
Relembrando o que escrevi há mais de ano neste artigo sobre o Nostr:
...não se trata de concordar ou não com algo. Trata-se do inevitável contra palavras ao vento. De nada adianta ser a favor ou não da proibição de armas. Hoje, qualquer pessoa imprime em 3D uma bazuca ou uma AR-15 em sua própria casa com os materiais e códigos certos, de facílimo acesso. Menos pior que sejam vendidas – e registradas?
Segundo: não adianta sequer colocar a culpa na tal cultura armamentista em si. Pois, mesmo que de fato fossem capazes da façanha de apreender todos os computadores e impressoras 3D, e derrubar a internet, ainda assim, teríamos facas, paus, pedras, fogo, punhos e, acima de tudo, ainda teríamos a imprensa tradicional inflamando, dividindo, alimentando o verme da discórdia, do ódio, da desconfiança entre o povo.
Sem desespero. Há solução, talvez a única, e bem simples: um pouquinho, só um pouquinho de honestidade intelectual. Vê bem, não se trata de verdade, bondade, neopuritanismo. É o oposto. Após séculos de razão pura, décadas de fenomenologia da vontade, de-terminismo do inconsciente, apolíneos, recaímos no pecado do maniqueísmo, bem Idade Média. Belos progressistas. Os bons homens contra os homens de bem. Deixamos a ética de lado para abraçarmos um moralismo chinfrim, piegas, desbotado, insosso, polianesco. Retornamos ao uga-buga da linguagem, aos rudimentos das representações, ao simulacro do ser, reduzimo-nos a nada. Fascista se tornou sinônimo de feio, bobo, chato. Não se pode mais nem beber um copo de leite em paz nas redes sociais. Uma coisa é certa: se eu fosse nazista, estaria rindo desse caos que eu mesmo promovi. Não estou. Câmaras de gás? Tanto mais prático que nos matemos de vez, uns aos outros. A palavra jaz morta. E não, nunca matou ninguém.
Já ouço essa conversa de “ameaça à espreita” desde antes de nascer. Em 64, foi a “ameaça comunista” justificando o golpe dos fardas. Agora, é a “ameaça fascista” justificando, no Brasil, o golpe dos togas. Nos EUA, o tiro que saiu pela culatra. Coisa de gênio, não? “Vamos acabar com a ameaça”, grita o grande líder. “Como?”, retruca o meme. “Concretizando-a.” Molha o bico. “Excepcionalmente.”