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E que venham os Pós-Ludistas?

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E que venham os Pós-Ludistas?

Uma análise do contramovimento polanyiano a partir de Ruy Braga e Mateus Sousa.

caco ishak
Feb 23, 2022
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E que venham os Pós-Ludistas?

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Por Caco Ishak*

“The apologetics of the Church charged the individual himself with the guilt that accounted for his sufferings. His sinfulness was located by Malthus in his animal proclivity for procreation, that organic source of the reality of society as manifested in the iron laws that must breed war, vice, pestilence and crime. Ricardo recognized in this coarse grain of creation the sufficient cause for low wages. The crushing moral burden with which evangelical Christianity had loaded the poor man was seen by Ricardo better fitted for the broad shoulders of society.”

(Polanyi, 1957)

Dia desses, outro Ricardo, o cartunista, Coimbra, lembrou de Ned Ludd, lendário (pois no mínimo lenda não confirmada mesmo) trabalhador inglês, “um arruaceiro vestido de Vovó Mafalda” que teria se revoltado a marteladas contra as máquinas de uma tecelagem durante a Primeira Revolução Industrial, dando origem ao Ludismo, contramovimento operário no comecinho do Século XIX. Ludd, ou Edward Ludlam, ou quem (não-)fosse, por sua vez, (somos todos Ned Ludd) me puxou outras tantas memórias, a inevitável associação ao Neoludismo, fruto deturpado já da Terceira Revolução, a.k.a. Digital, cujo guru, Ted “Unabomber” Kaczynski, matemático dito brilhante, passou de professor assistente da Universidade de Berkeley — reduto acadêmico da contracultura californiana, e emprego que abandonou em 1969 — a terrorista doméstico.

Cinco anos após a morte do austríaco Karl Polanyi, no Canadá, e doze após o rascunho de “The machine and the discovery of the society”. Entre 1978 e 1995, Kaczynski matou três pessoas e deixou outras vinte e três feridas em sua quixotada “anarquista” contra as máquinas — e contra a “esquerda”. Até hoje, é cultuado em submundos neonazistas e ecofascistas da Deep Web, apesar de ter se manifestado contrário tanto ao fascismo quanto ao nazismo.

Em seu texto inacabado, Polanyi ensina que “os Ludistas foram os últimos a fazer da máquina em pessoa a responsável pelas malfeitorias desta, e a esmigalharam.” Defende que “o Ludismo havia provado um antídoto às invenções mecânicas ao preço da violência — e da inevitável derrota final" que veio por meio da intervenção estatal, claro.

E descreve uma realidade causadora do contramovimento nem tão distante da nossa, passados sessenta e cinco anos, talvez mera questão de se trocar “dezenas” por “centenas”, alguns bilhões: “A substância orgânica da sociedade adquiriu uma rigidez crustácea, com talvez dezenas de milhões de vidas dependendo de máquinas estratégicas. O medo impregnou as mentes e uma propensão a se submeter a um poder sem limites foi gerada com gigantescas circulares que cuspiam informações no calor da emoção”. Grifo e traduções nossos.

Faz contraponto nesse sentido a Fourier, quem “acreditava que a máquina inauguraria uma era de milagres científicos. Leis psicológicas revelariam as séries matemáticas do estado de fuga como a chave universal da harmonia na divisão do trabalho bem como em tudo mais.”

Imagino como Kaczynski não deva ter se sentido lendo isso, se é que leu. E como não deva ter se sentido ao descobrir, antes ou depois, se é que descobriu, o que o mesmo Polanyi, do alto de seu paternalismo em A grande transformação, de 1944, treze anos antes de A máquina..., pensava sobre o contramovimento popular de “resistência à mercantilização do labor, da terra e do dinheiro” — objeto de estudo de A rebeldia do precariado, do sociólogo brasileiro Ruy Braga, lançado em 2017 pela Boitempo. Talvez o livro mais importante escrito no país nos últimos cinco anos. Explica-se.

Para continuar com Braga:

“Apesar da importância do conceito de contramovimento, Polanyi se limitou a descrever um movimento social ‘espontâneo’ cuja ‘natureza puramente prática, pragmática’ fundiu classes sociais distintas em uma coalizão protecionista capaz de expressar a inquietação de uma sociedade atormentada pelo liberalismo econômico. Assim como não foi capaz de discernir claramente os diferentes tipos de intervenção estatal, subestimando, em consequência, o apoio do Estado às forças de mercado, Polanyi também falhou em fornecer uma teoria dos movimentos sociais capaz de explicar a estrutura e a dinâmica da ação do contramovimento. Em poucas palavras, o erro do diagnóstico polanyiano acerca da morte definitiva do liberalismo econômico deveu-se à subestimação da dinâmica propriamente política da luta social.”

O que Kaczynski teria sentido lendo A rebeldia do precariado? Teria se tornado um terrorista mesmo assim ou abraçado a esquerda, e a história dos Neoludistas teria sido outra?

Talvez o próprio Braga, frisando que “as carências da teoria polanyiana realçam a necessidade de uma abordagem crítica capaz de iluminar as relações da sociedade com o Estado e com o mercado”, já tenha respondido em seu estudo: “...é possível dizer que essas tensões têm favorecido soluções antidemocráticas para os embates sociais.”

Ao que procurou “identificar algumas das conexões decorrentes dessa crise como constituintes de movimentos que, através da retomada de algum tipo de controle sobre seu meio mais imediato, buscam atingir domínios mais distantes, desafiando a mitologia de uma crise totalmente alheia a qualquer forma de controle social.”

Dono de uma fábrica e “sua” tropa inglesa em defesa das máquinas no Séc. XIX.

Mas e o precariado? O que diz? Sinto que não somos nós quem temos de responder.

Precisamos escutar o contramovimento do precariado

Com a palavra, portanto, Mateus da Silva Sousa, em Neoprogressista: como reconectar a esquerda com o povo. Um povo que “...no máximo estudou até o Ensino Médio e nunca leu um livro” e que “não vai entender o que você está falando sobre Marx ou Foucault. Na verdade, tudo isso vai ser muito chato de ouvir depois de um dia cansativo de trabalho, quatro horas ao todo de viagem dentro de um BRT lotado até chegar em casa e, quando chega, às vezes ainda tem que cuidar de casa, da família, de filhos. Ele beija sua mulher, brinca com seus filhos, janta, assiste televisão e vai dormir suas sagradas oito horas ou às vezes muito menos para aguentar os próximos cinco dias antes de tirar uma folga.”

Sousa é morador da Rocinha, pai de família e graduando em História na UFRJ. Desde cedo, passou por alguns tantos subempregos. Ter sobrevivido até os 23 anos já foi um baita feito. Entrar na universidade, então, a maior conquista para pouquíssimas famílias na mesma situação enquanto, obviamente, “não basta apenas um preto a cada dez mil entrando em faculdades federais, não adianta um favelado a cada cem milhões entrando no Senado”. Escrever um livro de antemão ciente de que os seus dificilmente o folheariam, na melhor das hipóteses, e um livro tão urgente, tão direto, ainda tão jovem, junta tudo e: quase um milagre que tenha chegado às minhas mãos.

E o discurso de Sousa não poderia ser mais diferente daquele propagado nos bolsões cirandeiros da positividade tóxica: “Todos estamos frustrados, angustiados, sentindo medo, pânico, depressão, ódio e desesperança em relação ao que vivemos em nosso país”, a.k.a. mundo, mas “a esquerda ainda prefere trabalhar com a lógica e a razão acadêmicas, deixando de lado a linguagem universal que rompe as barreiras da ideologia”, qual seja, o sentimento. “Identificar o que o outro sente e usar a lógica e a razão para despertar o sentimento desejado é fundamental.” Não se trata de manipulação, percebe? Mas empatia. Despertar nossos próprios sentimentos a partir dos sentimentos do povo e que sejam a ele voltados.

Sob pena de perdermos cada vez mais espaço. “E, infelizmente, essa é a realidade, é por onde a direita conservadora vem crescendo de forma avassaladora em um movimento de contradição que usa a falha da comunicação da esquerda para colocar esse mesmo povo [...] ao lado de uma política de direita que apenas visa [...] garantir que aqueles que sempre ganharam continuem ganhando mais.” Aqui, cuidado redobrado para evitar que o #EleNão acabe se confundindo com #ElxsNão.

“A fuga das pautas que têm sido debatidas pela esquerda é proposital no sentido de conectar, já que a esquerda não está na favela para disputar, então que não chegue lá apenas para confrontar e sim para agregar [...] não podemos nos dar ao luxo de dispersar nossa pouca força em um milhão de direções diferentes em pautas que jogam até mesmo uns contra os outros.” É Mateus quem diz. Sou apenas o mensageiro. Não atire em nenhum de nós, de preferência, por favor.

Até porque, aqui, Mateus Sousa dialoga em perfeita harmonia com Ruy Braga. Não são, de fato, reivindicações meramente salariais. “Trata-se de um conflito globalizante que envolve o trabalho, mas transborda para os demais domínios sociais, como a família, a comunidade e a cidade”, aponta Braga. Negar isso é renegar o próprio povo. Aquele povo pelo qual prometemos lutar ao nos “alistarmos” na esquerda, ao cooptarmos movimentos sociais dos quais nem sequer fazíamos parte às vezes.

Ainda Braga: “O modo de vida periférico não aponta apenas para os limites da formalização do trabalho ou para a mesquinhez das concessões materiais aos subalternos. Anuncia que a resposta popular à crise da globalização, provavelmente, será inorgânica e intempestiva.” Isto, todavia, a TV aberta não mostra. Não lhe interessa mostrar, senão deturpando através das telenovelas e da pretensa imparcialidade dos telejornais, quando o que mais precisamos é, de uma vez por todas, escolher um lado. E, como sempre, haverá consequências a depender de que lado escolhamos. Consequências que já estamos carecas de saber e que talvez comecemos a sentir na própria pele branca, para variar um pouco.

Não nos enganemos. Precisamos mais do povo a nosso lado do que, ulteriormente, o povo precisa de nós. E nem estou falando à luz exploratória do topo da pirâmide. Já nem se trata mais de discutirmos nossa traição, mas de nos descobrirmos abandonados e insuficientes para levarmos adiante nosso sonho latino-americano sem dinheiro no banco. Quem gosta de miséria, no fim das contas, é intelectual. Braga explica: “O ressurgimento de uma pauta materialista na Europa do Sul tem desafiado o neoliberalismo de uma forma mais contundente do que as lutas feministas, étnicas, raciais e anti-homofóbicas foram capazes de fazer até o presente momento.”

Resumindo: “...aonde vai a crise da globalização, a rebeldia do precariado vai atrás. Ou seja, é da práxis política do proletariado precarizado que devemos partir, se quisermos decifrar o enigma da ausência de um contramovimento polanyiano em escala global.”

Ou o enigma da não-ausência pós-2017, quando da publicação do livro. Como bem sabemos, tudo mudou com a eleição de Donald Trump, ainda em 2016, e com a de Bolsonaro no Brasil em 2018 — para ficarmos nas duas mais importantes rupturas políticas no continente americano nos últimos anos (encarando Bolsonaro, evidente, justo como consequência inorgânica do Golpe de 2016, logo: 201…2). Para coroar tal não-ausência, uma pandemia inventou de dar as cartas a partir de 2020.

E o que será desse castelo tão frágil e prestes a ruir para além da própria ruína? “Relembrando Antonio Gramsci, diríamos que, no Brasil, só é possível prever cientificamente a luta de classes, mas não seu resultado.” Braga sincerão. “E a combinação entre a mercantilização, a exploração e a espoliação do trabalho apenas nos permite antever um horizonte tormentoso para as tensões sociais que se acumulam no país.” De dentro do buraco, afinal, impossível se mirar horizonte algum.

Para fechar com Sousa: “Nenhum partido de esquerda, ninguém na política estaria pronto para ser a vanguarda e guiar o povo para fora desse buraco que estamos todos sendo sugados.”

Ao povo, portanto, restaria rastejar por conta própria para fora de si mesmo, da não-vida, do autoencarceramento, do hermetismo criado de forma também inorgânica, diga-se, ainda que nada intempestiva pelas elites intelectual de esquerda e financeira de direita, ou tudo junto e misturado. E o estado de fuga, embora ainda fechemos os olhos para as possíveis rotas sendo traçadas pelo povo em meio a nosso matagal retórico, está em plena marcha. Ou, melhor dizendo, em ponto morto por ora. Trabalhadores vêm cruzando os braços, preferindo pedir demissão de seus empregos e subempregos a continuar se submetendo à tirania neoliberal de governantes e empregadores. A Grande Renúncia.

Quem ganha nessa queda de braço? E quem são esses quem? Somos? Antes, até daria para se dizer: “mas precisam da mão-de-obra”. E hoje?

Precisamos também escutar o precariado do norte global

Ludd, Kaczynski, Polanyi, Braga, Sousa... tudo acabou me levando a outra associação tão inevitável quanto: sim, os próprios, aos caminhoneiros canadenses.

Pare. Respire fundo. Conte até o quanto quiser. Continue lendo. Obrigado.

E perdão pela enxurrada de informações à primeira vista desconexas até aqui — ainda que inevitáveis. Talvez só piore. Apenas tentando compreender como a cabeça de um Kaczynski porventura funcionaria. Conclusão: em nada, ou quase nada, me parece semelhante às dos caminhoneiros. Que, antes de qualquer coisa (perdão, perdão, mil vezes perdão), bom que se diga, estão em quase 90% de vacinados, como o próprio Primeiro-Ministro Justin Trudeau admite. Quantos destes 90% estão no comboio? Pois é. Pois bem. Não é o foco aqui. Senão o fascismo (sim) do premier.

A primeira e grande diferença, até o momento ao menos: ninguém ali me pareceu terrorista, conforme Trudeau os estigmatizou como desculpa para invocar de forma inédita o Emergency Act desde sua promulgação há 34 anos (Freud explica) — dias após tachá-los de “misóginos” e “supremacistas” (outros quinhentos, e os há de fato: que fossem presos, todos, desde que ultrapassada a primeira fase do iter criminis), o que, por sua vez, foi precedido por “pontos de vista inaceitáveis” entre as partes, onde tudo começou. Tão inaceitáveis quanto a autonomia de vontade na escolha de tratamento médico. Um perigo. Não à toa, lembrei-me dos “vândalos” de 2013. Por mais que queiramos pintar os caminhoneiros em sua essência como os 20% de trumpistas roxos, o gado gigante de Sérgio Reis, dessa vez, ninguém ali invadiu o Capitólio nem o Supremo Tribunal, a ordem democrática não foi de modo algum ameaçada (senão a econômica, bolsos doem) e — eis a segunda grande diferença entre eles e o Neoludista — caminhoneiros ainda precisam de suas máquinas para trabalhar. Ainda. Ao menos enquanto conseguirem manter seus empregos — e, aqui, os empregadores, como não poderia deixar de ser, seguem sendo os maiores interessados (ponto a que, lembre-se bem, voltaremos mais adiante).

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Janice Dickson @janicedickson
Not far from police action the party continues #cdnpoli #convoy
9:18 PM ∙ Feb 18, 2022
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Não nos enganemos (tanto). Pelo amor das deusas, não nos enganemos. “A retórica da ‘revolução democrática nacional’ simplesmente não convence esses grupos [...] Ao contrário, em muitos casos, o gasto social intensifica a competição entre as comunidades pobres, alimentando a violência e impulsionando ataques xenofóbicos”, explica Braga, indo além para afirmar que, “em termos gerais, é possível perceber que tanto os ataques xenofóbicos quanto os protestos sociais envolvem as mesmas organizações populares, compartilham repertórios comuns, aproximam a violência e a ação coletiva e vocalizam reclamações a respeito da corrupção e da incompetência do Estado em prover serviços adequados às comunidades pobres.” O povo que dizemos tanto amar. Ou parte dele. Sem os filtros de uma tela.

Aqui, ainda, a linha limítrofe entre a tão discutida liberdade de expressão e crime. Eis o perigo de se generalizar tanto, tudo. Reitero: Kim Kataguari, apologia ao nazismo segundo o art. 20 da Lei 7716/89 — “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Ele que processe quem quiser. Por outro lado: embora consiga tipificar alguns tantos crimes na conduta de alguns tantos caminhoneiros canadenses isolados, nada perto de um ato terrorista e nada que se sobreponha ao bom e velho direito à greve dos demais. Havia várias outras maneiras de se lidar com a situação, em que não perdêssemos todos. Inclusive, derrubando os mandatos — a exemplo de alguns (tantos) países europeus (e Israel).

Não foi bem assim que a parcela do mundo ocidental “que importa” encarou. A começar pelo próprio sindicato dos caminhoneiros. Inevitável não lembrar do episódio no povoamento de Marikana, África do Sul, ocorrido em 2012 e narrado por Ruy Braga, quando trinta e quatro trabalhadores foram assassinados pela polícia. Dias antes, na sede do sindicato, haviam sido “recebidos à bala por capangas, com o saldo de um grevista assassinado.”

Nas palavras de quem de fato importa, um operador de perfuratriz:

“O NUM atirou em sua própria gente! [...] Pedimos uma única coisa que era um aumento do salário e nós queríamos ser representados pelo NUM, mas nossa esperança foi destruída quando [...] começaram a atirar na gente.” (Peter Alexander et al apud Braga) E com esperança alheia não se brinca.

Tem quem ainda acredite que o ser humano não possa ser assim tão mau, apesar do maniqueísmo em como leva sua vida prática. Tem quem já sofreu e sofre na pele essa maldade toda e dela não ousa desconfiar, apesar de mais niilista que qualquer leitor de Além do bem e do mal. O bom e velho “com preto, fazem isso todo dia na favela”. E fazem mesmo. Mas perceba: não sou eu quem está justificando.

O ponto aqui é: se estão fazendo isso com brancos em plena luz do dia, em pleno asfalto, sem identificação, com uma idosa branca cis provavelmente heterossexual e cristã, falando em paz e amor e felicidade, imagina o que mais não vão fazer com pretos nos becos sem iluminação onde sempre fizeram cada vez pior? E com muçulmanos e judeus? Reza o dito popular: não há nada tão ruim que não possa... pois então. Não rimarei.

De resto: é no asfalto que não os querem mesmo. Quanto menos por aqui. Morrem de medo do dia cantado por Wilson das Neves em que “o morro descer e não for carnaval”. Por ora, ainda seguimos que nem Chico (mas não tanto) à espera de quando (e se) o carnaval chegar, “só vendo e sabendo e sentindo e escutando”. Uns mais que os outros.

Como Augusto de Arruda Botelho bem apontou, “o número de armas em circulação na categoria CAC no Brasil já é superior ao total de armas da Polícia Militar.” O que não é pouca coisa. Isso sem contar com os três oitões, clandestinos ou não, capitais ou interior, desse “exército caseiro”. Milicianos, rurais ou urbanos, estão bem armados como nunca e cada vez mais. Provocá-los sem razão, dar-lhes motivos, justo agora, não ajudará em nada.

Entre eles e nós, para variar: o povo. Pós-Ludistas em potencial. Que estão carecas de saber sobre todas as falhas do sistema porque são tão somente as primeiras e maiores vítimas. Como nós também estávamos carecas de saber. Negar o óbvio só faz a desconfiança se confirmar, a revolta aumentar e o diálogo cessar de vez. Só faz alimentar ainda mais os Gremlins da extrema-direita. Até quando? Quantos Gizmos mais até perdermos a voz de tanto gritar com uma tela? Quantos outros Kaczynski?

Ou continuaremos insistindo, mesmo sem voz, em apontar o dedo e tachar o “outro” de terrorista por conta da desinformação que nos convém? É assim, de fato, que terroristas são criados. Invariavelmente, a pecha acaba voltando qual bumerangue. E, não se esqueça, voltando contra quem está rouco e já não pode gritar.

Quando foi que nos tornamos tão maniqueístas como se Tarkin e Vader fossem mais plausíveis que Hannibal Lecter e Walter White? E sei que, com Bolsonaro, parece não restar outra saída. Mas não, meu caro, minha cara. O lobo segue vestindo pele de cordeiro. Soros segue patrocinando segmentos da “esquerda” a título de filantropia. Trudeau segue se valendo das bandeiras humanistas para cometer os piores crimes — o velho meme dos caças bombardeiros. E todos voltam para casa no fim do dia e beijam suas esposas e jantam com os filhos e netos e escovam os dentes, defecam e vão dormir para talvez acordar no meio da madrugada, trincando os dentes, testa suando, depois de um pesadelo.

Para além do bem e do mal, (ainda) tão humanos (embora com certos requintes inevitáveis de crueldade) quanto o trabalhador segundo Mateus.

Precisamos falar (um pouquinho) sobre novas tecnologias

David Edgerton, historiador da ciência e da tecnologia, ainda em 2011, publicou um artigo sobre os 200 anos do Ludismo na revista Nature, apenas, celebrando “os mais importantes oponentes de hoje a novas ideias, invenções e inovações: os cientistas.”

Blockchain, por exemplo. Não é de agora que o CryptoTwitter vem sendo alertado sobre bancos (logo, exchanges) não serem seguros. Caso os Pós-Ludistas soubessem um pouquinho mais sobre as criptomoedas que recebem, todavia, não estariam tão preocupados com suas contas bancárias nem suas carteiras digitais congeladas. Mas que fique claro: não é possível congelar uma carteira na blockchain a menos que as autoridades tenham em mãos as chaves de segurança de tal carteira ou, institucionalizada, que a carteira esteja numa exchange. Kaczynski saberia bem disso. Deve saber, segue vivo. Seguem.

Ted Kaczynski. Sarah Connor. Deckard. Trinity, Neo, Ned Ludd, temos Pós-Ludistas para todos os gostos. E Tonies Stark para todos os credos também. Num universo que, de ficção científica, não tem nada. Enquanto nos ausentamos do mundo real, bilionários reocupam espaços. Conquistam a confiança do povo. Quais seriam os interesses de Elon Musk, por exemplo, ao insuflar o comboio da liberdade? O mesmo Musk que, mostrando-se preocupado com o avanço da inteligência artificial em “mãos erradas”, decidiu ele próprio abrir uma empresa de AI, a Neuralink, para o azar de seus macacos (por ora). O mesmo Musk que, aliás, como é público e notório, está à frente de um projeto na Tesla para o desenvolvimento de automóveis com pilotos automáticos. O que mais bem viria a calhar ao patronato em meio a uma greve de caminhoneiros que ameaça se espalhar mundo afora? Sim, claro, somos mais espertos que Elon Musk e todo o resto da humanidade. Ainda assim. Eis a desculpa perfeita para a insurreição dos Pós-Ludistas. Já não dependeriam mais de seus caminhões e vice-versa. Quebradeira geral. Megatron vs LaBeouf. Simples assim.

Fato já batido e rebatido é: os trabalhadores que antes operavam as máquinas estão sendo, sim, gradativamente substituídos pelas máquinas em si. Pergunto: qual cova rasa lhes caberá, aos operários, à “casta inferior”? Até hoje, a base da pirâmide só sobreviveu pois foi necessária para fazer a roda do capitalismo girar até o topo. E quando for tão descartável quanto uma seringa?

Geral, aliás, pode significar muita coisa. E se as máquinas, no fim das contas, formos nós mesmos? Ideia absurda? Não para tantos futuristas, cientistas e teóricos midiáticos a exemplo de Douglas Rushkoff. O norte-americano defende, em Um jogo chamado futuro, que piercings e próteses mamárias (entre outros) seriam meios de nos acostumarmos com a ideia do pós-humano, o que ele chama de “tecnologia do realce”. Hoje, celulares grudados nas mãos. Amanhã: chips, próteses ciborgues, “eletrodos, tomadas”... Rushkoff que também é autor do fundamental Programe ou seja programado, cujo título é autoexplicativo. E há quem jure que não haverá a menor resistência a todo esse avanço tecnológico por parte de “alguém que nunca tenha enfiado metal dentro da pele”. Em outro mundo, talvez. Não no Planeta Terra. Já tivemos provas o suficiente disso. O que fazer com a resistência? Aniquilá-la? Pode até ser. Só não cairão sem lutar. Sem a tal quebradeira geral pós-ludista. A questão é: de que lado ficaremos? Dos humanos, dos desumanos, dos pós-humanos e/ou das máquinas? O assunto não lhe interessa? Pois interessa ao Fórum Econômico Mundial.

Ficaremos ao lado do povo, independente de credo, etnia, ideologia (desde que crime não seja)? Entre Deus e o Diabo, ficaremos com o ateísmo de praxe? Com o Estado laico? Com a ciência? Com os pagãos, com as Madalenas, com os Pós-Ludistas de vestidões e martelos em mãos, pondo abaixo toda forma de opressão — inclusive, sine qua non, a própria?

Ou isso ou...

...admitamos: estamos pouco nos lixando para o coletivo. Interessam-nos mais nossos próprios direitos, nossas próprias angústias e medos e privilégios que nos blindam do outro, o que ficou um tanto mais evidente nos últimos anos. Direitos de branco, sim. De classe média-alta, sim. Respaldados pelo establishment, de igual modo. E que, uma vez “conquistados”, bastam na selfie. Quem diria? Hoje, o povo também tem celular. Nada nem perto de uma democratização digital, como vendem as companhias telefônicas em eventos por elas patrocinados, mas tem. E, o pouco que tem, compartilha-se (quando os bilionários da Big Tech deixam).

Não, meu caro, minha cara, não temos o direito de humilhar ou privar de seus direitos um garçom, ainda que no sagrado horário de folga ou da greve, só porque ele votou no Bolsonaro ou porque é contra mandatos. Quanto menos educá-lo. Shall not patronize. Aprendamos um pouco. Sem comiserações em palcos de auditório virtual. Tem o Google para tanto. E livros como os de Mateus da Silva Sousa. Além dos bancos de busão, que levam a (quase) todas as comunidades (maior mentira ainda assim). E a realidade sem a mediação dos filtros de uma tela, seja a da Globo ou de nossos iPhones, como já dito, não é das mais salubres.

Ao Estado pouco importa o amargor do remédio, quanto menos a cura. Costumavam ser nossas tais preocupações. Quem nos tornamos depois de dois anos de pandemia? Pergunta a jornalista Dani Arrais no Instagram (ainda que sobre tema diverso).

Acrescento: e depois de três anos de Bolsonaro?

Palpites?

Pós-Ludistas dirão? Que venham? Ou já estariam entre nós?

Inevitável?

Prequela de O Conto da Aia? Mas… e o Canadá? Cadê Trudeau?

*Caco Ishak é escritor, jornalista e, a bem da verdade, está morto desde 2009. Quem escreve é Ricardo G. Ishak, pós-autor, Mestre em Comunicação pela ECA/USP.


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