As tantas aspas da Vanguarda (parte 3)
Horrorismo e destruição: fake news como consequência dos fatos
Após a revolta de 17 de junho / O Secretário do Sindicato dos Escritores / Mandou distribuir panfletos na Stalinallee / Declarando que o povo / Havia perdido a confiança do governo / E poderia reconquistá-la apenas / Com esforços redobrados. Não seria mais fácil / Nesse caso para o governo / Dissolver o povo / E eleger outro? (Berthold Brecht)
Nossa tarefa é a crítica implacável, muito mais contra supostos amigos do que contra inimigos declarados e, ao mantermos tal posição, alegremente renunciamos à popularidade democrática barata. (Karl Marx)
Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal. (Millôr Fernandes)
(Em memória de Luca Di Meo, Wu Ming 3. Obrigado pelos serviços prestados.)
Parafraseando Julian Assange já de saída: Este artigo não é um manifesto. “Não há tempo para isso.” Este artigo é um alerta. Cooptação como consequência do abandono, a tese. O desastre. O horror. Não por falta de aviso. Talvez de zelo.
Sete a cada dez jornalistas brasileiros hoje na faixa dos 35/50 anos de idade leram (ou tomaram conhecimento de) algum volume da coleção Baderna, publicada na virada do século pela editora Conrad. Fonte: as vozes na minha cabeça – e não são poucas. Lançada nos anos pós-Seattle, era a nata da vanguarda neossituacionista nascida e/ou (re)criada no quintal anarcopunk dos 70s/80s. Hakim Bey, Matteo Guarnaccia, Bob Black – até Marx, de penetra, com Teses de Feuerbach, e, mais recente, com o revival da coleção (pela editora Veneta, também comandada pelo escritor e editor Rogério de Campos), Maximilien Rubel. Entre eles, o caçula grunge da família: Luther Blissett.
Prazer.
“Qualquer um pode ser Luther Blissett”, pregava-se no livro Guerrilha Psíquica, publicado em 2001 no Brasil, ano anterior na Itália. Reunia textos escritos entre 1994 e 1999 por membros anônimos do projeto – “artistas, ativistas, fanfarrões”. Conforme a Dazed & Confused o pintou:
Luther Blissett é um poeta. Luther Blissett é um pensador. Luther Blissett é um romancista, um astro do rádio, um filósofo. Um prankster, um punk, um dadaísta, um ativista de esquerda e um neomítico herói do povo. Luther Blissett é, literalmente, uma lenda.
O “Robin Hood da era da informação” se valia do “horrorismo” (conforme tachado pela imprensa italiana) como arma do povo contra a indústria cultural – em particular, as corporações da grande mídia –, uma estratégia “baseada na sabotagem da máquina comunicativa no poder”, “uma impostura, um trabalho de ilusionismo que permite que Blissett mine as estruturas midiáticas como um vírus, infectando o sistema nervoso central dos meios de comunicação em massa”, segundo o dramaturgo Fábio Salvatti.
A ação de guerrilha midiática sempre deve inspirar-se na realidade, no acontecido. A divulgação de notícias falsas, a fraude midiática, não pode basear-se somente na fantasia: é necessário modificar a realidade, isto é, (in)formá-la, mas sem deixar que o caçador de notícia perceba. Ele não deve ter condições de distinguir entre realidade e fantasia. É preciso deixá-lo acreditar que tem o controle absoluto sobre o material disponível. É necessário, enfim, explorar sua própria arrogância profissional. (Blissett apud Salvatti)
Exemplos práticos narrados em Guerrilha Psíquica: espalhar animais destroçados pelos parques e praças de Bolonha e enviar cartas aos jornais e TVs da região, alimentando a crença na existência de grupos satanistas. Por meses, foram organizados debates sociológicos e religiosos sobre o tema, tamanha foi a preocupação com o fenômeno das seitas. O desaparecimento do artista inglês Harry Kipper foi outro episódio que mobilizou a mídia italiana. Um porém: Harry Kipper nunca nem existiu. Terrorismo midiático. Terrorismo poético. Contraterrorismo, contra a sociedade do espetáculo, que em nada se associa ou se assemelha aos atos (estes sim) terroristas de um Ted ‘Unabomber’ Kaczynski qualquer – ou da grande mídia. “Sem vítimas mortais”, conforme pontua a historiadora Giulia Crippa:
O ponto de partida das ações e das reflexões de Luther Blissett parece ser uma aplicação prática das teorias de Jean Baudrillard e de sua afirmação de que “somos todos reféns, somos todos terroristas”. Também se revelam as influências ‘surrealistas’ de interpretação do mundo urbano e da sociedade contemporânea da Internacional Situacionista, fundada pelo filósofo francês Guy Debord, que, aliás, fundamenta as aplicações práticas da psicogeografia nas experiências descritas pelo livro.
Contra-informação, portanto, e não desinformação. “Uma resistência biopolítica frente ao biopoder midiático.” Valer-se das fraquezas do espetáculo para expô-lo, carne viva. Da simulação midiática às hipermodernas fake news, todavia, foi um pulo. Bastou não dar a devida atenção, não prestar o devido cuidado, não remediar as feridas expostas. Abandonar não só o problema como a solução pelo caminho. Não que o problema fosse novidade.
De Malcolm X (“Se você não for cuidadoso, os jornais farão com que você odeie as pessoas que estão sendo oprimidas e ame os responsáveis pela opressão.”) a Millôr Fernandes, demitido após uma única semana na Tribuna da Imprensa por ter escrito artigo sobre a corrupção nos meios de comunicação (e quem, desnecessário dizer, fundaria O Pasquim dali a oito anos com grande elenco [“Jaguar {…} se essa revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente”]), todos (que se prezassem) apontaram suas carabinas para a grande mídia. Era piada na faculdade de jornalismo, inclusive: onde houvesse um grupo descendo a lenha na imprensa, batata – jornalistas. Oscar Wilde não fugiu à regra:
“Antigamente, os homens tinham a roda de torturas. Hoje têm a Imprensa. Isto certamente é um progresso. Mas ainda é má, injusta e desmoralizante. Alguém – teria sido Burke? – chamou o jornalismo de o quarto poder. Isto na época sem dúvida era verdade. Mas hoje ele é realmente o único poder. (...) Nos Estados Unidos, o Presidente reina por quatro anos e o Jornalismo governa para todo o sempre. Felizmente, nesse país [Inglaterra], o Jornalismo levou sua autoridade ao extremo mais flagrante e brutal e, como decorrência lógica, começou a gerar um espírito de revolta: ou diverte ou aborrece as pessoas, conforme seu temperamento. Mas deixou de ser a força real que era. Não é levado a sério.”
Passados cento e vinte anos... e pouco mudou. Como levar a sério, afinal, um jornal que representa a fundação, sem escritório no Brasil (logo: escritório), daquele que é a cabeça por trás do clubinho dos bilionários de Davos? Jornalismo independente, por supuesto. Não que o descrédito seja exclusividade do veículo em questão. Daria para contar em três dedos, “todos parte de conglomerados com interesses que muitas vezes interferem na cobertura de temas nacionais”, salienta a jornalista Natalia Viana, fundadora e diretora executiva da Agência Pública, na apresentação do livro Cypherpunks, de Julian Assange, lançado pouco depois do asilo político na Embaixada do Equador em Londres. “Isso reflete a concentração histórica da mídia no Brasil, onde cinco empresas, pertencentes a seis famílias, controlam 70% de todos os meios de comunicação.”
É só sair abrindo os diários de cada estado: o “grosso” vem das agências de notícias – não por coincidência, três nacionais. Que, não por coincidência, pautam-se por duas ou três internacionais. Fosse hoje, Luther Blissett enviaria à imprensa – valendo-se de um spoof box para emular o e-mail de uma agência qualquer – um boletim de notícias falsas na certeza de que seriam publicadas ao menos nas edições on-line. Ctrl+C e Ctrl+V, eis a lei. A checagem vem de cima. Real é o que o senhor patrão decidir ser real. E que nada saia do script, como publicar, da própria cabeça, uma notinha de quatro linhas, por mais aterradora, contra um dos grandes anunciantes do jornal: demissão sumária.
O real, portanto, parece ser bem relativo a depender de quem o define. A diferença que não faz uma boa interpretação. Tanto mais importante: interpretação posta em prática. JD Salinger que o diga. A práxis marxista. Os evangelistas. Foucault, pobre Foucault. Eco. Digo, ou ecoo: Blissett. Voltaremos ao situacionista em breve. Por ora: atenhamo-nos ao (real) real. A responsabilidade é real. As consequências do abandono, tanto mais.
De Déjacque a Assange: libertários como nem o diabo gosta
Hoje palavrão capaz de ruborizar as faces de senhorinhas da sociedade e homens do bem, embora, justiça seja feita, aconteça desde então, o termo “libertário” foi “cunhado” em 1857, quatorze anos antes da Comuna de Paris, pelo então comunista Joseph Déjacque em carta ao mutualista Pierre Joseph Proudhon. No ano seguinte, Déjacque se valeu do termo para batizar o periódico anarquista (e independente) Le Libertaire, Journal du mouvement social, cuja circulação se deu, em Nova York, entre junho de 1858 e fevereiro de 1861.
Setenta anos mais tarde, em abril de 1932, também em Nova York, o anarco-sindicalista russo Sam Dolgoff (que assinava, cousas da vida, com o pseudônimo Samuel Weiner), em conjunto com o Vanguard Group, composto por membros do jornal Road to Freedom, e com o grupo Friends of Freedom, lançou o periódico (também independente) Vanguard: An Anarquist Youth Publication. Subtítulo que, após a primeira edição, passou a ser A Libertarian Communist Journal. Ao longo de sete anos, até julho de 1939, o Vanguard se tornou porta-voz central do movimento anarquista ao redor do mundo.
Em 1941, dois membros do grupo Vanguard, Clara Fredricks e seu marido Sidney Morrison, publicaram duas edições do Libertarian Views, jornal mimeografado (e, claro, independente) onde, “a contragosto de seus camaradas pacifistas, defendiam a guerra contra o fascismo.” O casal participava ainda do Libertarian Book Club, tendo contribuído para a publicação e a distribuição de vasta literatura anarquista nos Estados Unidos.
Nunca é demais lembrar as palavras do filósofo Paulo Arantes sobre 1968: “A Rosa Luxemburgo, quando aparecia no debate (...) era um teste para saber quem era autoritário e quem era libertário.” Em tempos de censura (sim), de ministérios da verdade, verdades estas cada vez mais distantes das verdades vivenciadas na prática pelo povo, tudo sob os aplausos de parte da dita vanguarda contemporânea, quando não por ela desencadeados, mais que necessário, urgente relembrar sempre o que escreveu Luxemburgo:
Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio.
Um século atrás, 1922. Três anos antes, no Rio de Janeiro, inspirados por Luxemburgo, três espartaquistas brasileiros, Astrojildo Pereira, José Oiticica e Santos Barbosa lançaram o periódico anarquista semanal Spártacus, que durou vinte e quatro edições. Vários jornais independentes já tinham surgido (e outros tantos estavam por vir) com a queda da monarquia, conforme pontua o cientista político Trajano Silva Jardim:
O fim da censura [no século XIX] facilita o aparecimento dos jornais comunitários, informativos de grupos políticos, étnicos e de categorias profissionais: alguns deles defendem a independência e a abolição da escravatura; outros estão ligados a ideias políticas de visão libertária de tendência anarquista; e outros são feministas, que defendem os interesses das mulheres.
Meio século mais tarde, 1977. Johnny Rotten vociferava em cima de um palco: “Deus salve a Rainha / Um regime fascista / Eles te tornaram um imbecil / Potencial bomba de hidrogênio / ... / Não deixe que lhe digam o que você quer / Não deixe que lhe digam o que você precisa / Sem futuro, sem futuro, sem futuro para você.”
(Já na “potencial bomba de hidrogênio”, a ponte com Anarchy in the U.K.: “Quero ser um anarquista / Me emputecer / Destruir!” Anos antes, Iggy Pop já cantava a bola com os Stooges pr’além-mar: “Eu sou o garoto esquecido pelo mundo / Aquele em modo de busca e destruição”. [Qualquer semelhança com o Karl Marx de Maximilien Rubel, um anarquista, dois, “zerbrechen”, redescoberto em plena década de 1970, definitivamente não é mera coin-cidência. Não deve ser.] Capaz que seja.)
Novo meio século depois, 2022 e... Johnny Rotten vocifera nas redes:
Eu nunca imaginei que viveria o bastante pra ver os direitistas se tornando os caras rebeldes que ultrajam os caretas mostrando o dedo do meio pro sistema, e os esquerdistas sendo os moralistas cagadores de regras, bando de chorões patrulhando nossas vidas e nos humilhando o tempo todo.
Judith Butler explica em Caminhos Divergentes? Ou apenas Lobão feelings? O comediante e apresentador Bill Maher garante que não: “Eu não mudei. Nadinha. Minha visão política segue a mesma. Eles que mudaram.”
A visão sobre o que significa ser libertário, ao menos, com certeza mudou. De ambos os lados. Da parte da direita, vestiram a carapuça como forma de se distanciarem dos liberais que passaram a saracotear com o Estado (tão mais simples caso se assumissem liberais clássicos). Da parte da esquerda, refutaram a pecha tão-somente... por conta disso. Afinal: se a direita (que já abraçou Julian Assange, diga-se) resolvesse adotar Marx como novo guru, no dia seguinte Marx seria defenestrado pela esquerda. Única lógica hipermoderna possível, pelo visto. Ser do contra. Ainda que contra tudo aquilo que passamos séculos defendendo e propagando. E que se abandonou, por um motivo ou outro. A consequência? Propagou-se, oras. Cooptado foi.
Foram. Princípios.
Os Santos Cypherpunks contra o Estado da Maldade
Para os bons e velhos anarquistas, todavia, libertário segue tendo um único significado admissível: libertário. No jargão popular: “tudo puta e viado”. Graças a Deus. E que fique claro: “nem todo anarquista é punk” (Spoiler: anarcocapitalismo não existe. De novo: aceite-se liberal que dói menos, liberte-se.) – e, ao contrário do que muitos pensam, “nem todo punk é anarquista”:
Há uma tendência entre aqueles de fora da subcultura de supor que punks e anarquistas são não apenas sinônimos um do outro (uma pressuposição altamente contestável) mas que o anarquismo em si é homogêneo. Enquanto comungam do objetivo de uma humanidade liberta, há uma multiplicidade de compreensões desses termos. Alguns seguem um anarquismo individualista conforme articulado por Max Stirner, no qual o indivíduo é o agente da revolução ao estender suas próprias liberdades. Ao tempo que, para os coletivistas, os agentes da mudança social são aqueles que sofrem mais por meio de várias formas de exploração.
O sociólogo irlandês Francis Stewart segue esmiuçando: “A mensagem mais importante do punk? D.I.Y. [Do it yourself, faça você mesmo]. Pense por si mesmo. Faça suas coisas do seu próprio jeito”. D.Y.O.R. – Do your own research: faça sua própria pesquisa. Não confie: verifique. Para mau entendedor: “Era sobre assumir o controle.”
Um perigo, de fato. Deleuze que o diga. E conforme observa Andy Müller-Maguhn, cofundador da European Digital Rights (Edri) e membro do Chaos Computer Club: “Essa é a coisa mais perigosa que pode acontecer aos governos nos dias de hoje – as pessoas terem ideias melhores que as políticas deles.” (2012, p. 102) Em suma: contornar o controle. (Des)criptografar a roda.
Os cypherpunks originais, meus camaradas, foram em grande parte libertários. Buscamos proteger a liberdade individual da tirania do Estado, e a criptografia foi a nossa arma secreta. Isso era subversivo porque a criptografia era de propriedade exclusiva dos Estados, usada como arma em suas variadas guerras.
Subversão. Substantivo feminino. Ato ou efeito de subverter. Insubordinação; revolta; ruína; perversão; destruição. Espera-se que o leitor tenha se identificado com uma ou mais das definições. Assange: o destruidor. Em nome próprio e do outro. Sabe que criptografia “pode ser utilizada para combater não apenas a tirania do Estado sobre os indivíduos, mas a tirania do império sobre a colônia.” Criptografia, porém, é apenas o meio, a arma. A munição, a mensagem é a informação. E como todo hacker (o de Araraquara talvez não) sabe: a informação quer ser livre. A importância disso, sabemos todos. Não à toa, como Assange bem lembra, “elites nacionais competindo umas com as outras são coisa do passado. Hoje elas estão se unindo e se alavancando.” Antes, ao menos, havia boa dose de resistência. Todos sabiam bem, era só ligar no Jornal Nacional, sempre uma barricada pegando fogo na telinha: o inimigo era Davos. Agora, cada vez mais, a resistência vem sendo cooptada (e adestrada) por meio das fundações dos patronos do Fórum Econômico Mundial – o que fica para a quarta e última parte.
Fato é: com inteligência artificial, processamento quântico, biometria e nanotecnologia já sendo realidade, não há mais que se falar em “distopia da vigilância pós-moderna”. O “parasita invasivo, que engorda à custa de sociedades que mergulham na internet” chafurda como nunca pelo planeta, “infectando todos os Estados e povos que encontra pela frente.” A saída lógica: resistir. Exército para tanto: há.
Nenhuma força repressora poderá resolver uma equação matemática. (...) É chegada a hora de pegar as armas deste nosso novo mundo, para lutar por nós mesmos e por aqueles que amamos. Nossa missão é proteger a autodeterminação onde for possível, impedir o avanço da distopia onde não for possível e, se tudo mais falhar, acelerar sua autodestruição.
Assange. Mas pode chamar de Shiva.
Contra um exército, afinal, só outro exército. E, “na prática, nossa vida privada entrou em uma zona militarizada. É como ter um soldado embaixo da cama. É uma militarização da vida civil.” Conforme, aliás, matéria do UOL alertou em 2016:
O Ministério da Justiça e a Polícia Federal intensificaram as investigações e o combate a crimes cibernéticos, como a pornografia infantil. Além disso, o Centro de Defesa Cibernética, autarquia vinculada ao Ministério da Defesa, fortaleceu o poder de ação dos militares no ambiente digital. (...) defensores dos direitos civis dizem que a balança está desequilibrada, pendendo demais para o lado da militarização do ciberespaço.
A solução, segundo o mesmo UOL? “Fortalecer a fiscalização federal, desenvolver uma legislação sólida” (Michel Temer era o presidente. Sem mais.) e ratificar a Convenção de Budapeste – o que foi feito em abril deste ano. Problema resolvido? Não para a European Data Protection Supervisor (EDPS), longe disso, uma vez que, entre outras questões, ainda há “lacunas relacionadas à obtenção de metadados”, de acordo com artigo publicado no Jota, além de “grave potencial de colisão com as normas de proteção dos direitos fundamentais relacionados aos dados pessoais”. Dizem isto porque nunca viram o PL das Fake News, capaz.
Há de rocha uma inocência na mentira, meu caro Nietzsche. Ainda mais essa: não bastassem “os Quatro Cavaleiros do Infoapocalipse: pornografia infantil [adendo: vide o caso ICQ no Brasil], terrorismo, lavagem de dinheiro e a guerra contra certas drogas” como desculpa furada (não pela extrema gravidade dos crimes, mas pelo extremismo empregado [em vão, sempre em vão] para tão só se valer deles como subterfúgio) para que nos submetam a um controle cada vez maior, não bastassem os quatro, portanto, agora temos o quinto Cavaleiro de três cabeças, o Cerberus da informação: as fake news. Avante, camaradas, rumo a “uma sociedade de vigilância totalitarista global” de braços dados “com forças econômicas e políticas incrivelmente poderosas”.
A começar pelo quarto poder, maior interessado na censura do jornalismo independente, não só pelos milhões, bilhões a médio prazo, como pura e simplesmente pelo controle em si, autoridade. E que, em constante e espetacularizada guerra contra dissidentes do status quo, consegue propagar o medo como ninguém. “É necessário instilar medo nas pessoas para que elas compreendam o problema antes de uma demanda suficiente ser criada para solucioná-lo.” Assange aqui seria desnecessário. Todos com idade o suficiente para já entender lé com cré em 2001 sabem bem do que o medo coletivo é capaz. Dito o quê: quanto de informação já era do conhecimento da grande mídia desde sempre e não foi revelado? E nos últimos anos?
Fatos são irrelevantes. A emoção é quem dita o rumo da prosa. O rumo da narrativa. Daí o pavor que têm da internet. “A internet é uma ferramenta, um antídoto contra as narrativas políticas, que por sua vez dependem da emotividade dos ciclos extremamente curtos das notícias na mídia”, elabora Jérémie Zimmermann, fundador da ONG La Quadrature du Net (p. 75), que atua em defesa do direito ao anonimato e na conscientização sobre os ataques legislativos à liberdade na internet.
Triste demais ter de admitir, isso posto, a duras penas, que o maior instrumento de censura hoje (mas não de hoje) é a própria imprensa. Manda quem paga, afinal. Obedece quem se encontra na base da pirâmide – uns por inocência e/ou necessidade, mesmo, outros a fim de, quem sabe, galgar até o topo – desenhada por Assange:
Na camada subsequente estão todas as formas de aliciamento econômico ou clientelista que são direcionadas às pessoas para que elas escrevam sobre isso ou aquilo. (...) Os jornalistas raramente são instruídos: “Não escreva nada sobre isso”, ou: “Evite falar sobre esse fato”. Mas sabem o que se espera deles porque conhecem os interesses dos grupos que querem apaziguar ou dos quais querem se aproximar. Se você se comportar, ganha um tapinha nas costas e uma recompensa, do contrário não terá nada disso.
Sabem bem, no entanto, a importância que a informação livre tem, teve e terá. Primavera Árabe. Wikileaks. Anonymous. Nada seria possível sem a Deep Web. Inadmissível um DIP 2.0 a essa altura. Ethan Zuckerman, especialista em liberdade de expressão na internet, fundador de grupos como Geekcorps e Global Voices, e diretor do Centro de Mídia Cívica do MIT questiona: “Será que vale mesmo a pena deixar de obter informação por causa de alguns mitos?” (Grifo nosso) Será que vale mesmo a pena sermos vigiados 24/7 por causa de dois, três Unabombers, de um PCC?
Enquanto isso... cem anos de sigilo lá, quinze anos cá, setenta e cinco além-mar... isso quando não resolvem simplesmente apagar tudo de uma vez. Será que vamos inverter os papéis, os valores, até nisso? “Não cometo nenhum crime mesmo, pode vigiar à vontade”? Ou vamos enfim aplicar a máxima cypherpunk, o que fazíamos até dia desses: privacidade para os fracos, transparência para os poderosos?
Na contramão da narrativa: de vanguarda a lacaios da Vanguard
Liberdade. Costumava ter lá seu prestígio. Não tanto quanto o monopólio da verdade, verdade axiomática, inquestionável, focinhos esfomeados disputando território entre as mamas de uma loba ainda em trabalho de parto, mais um e outro e o mar. Consenso? Não havia. Havia, sim, debate.
Um porém: jornalismo nada tem a ver com A Verdade. Deixo Eugênio Bucci explicar – para que eu não me estrepe:
Um bom órgão da imprensa avisa sobre o que se passa e, com isso, ajuda o cidadão a modular suas expectativas em relação ao futuro próximo. A questão filosófica da verdade, por ele entendida como uma categoria que se situa além do registro dos fatos, escaparia ao jornalismo.
Quando, em vez de avisar, informar, registrar os fatos, o órgão passa a ludibriar, simular a realidade, simular sua própria Verdade, aí mina o futuro de vez, próximo e distante. Basta o primeiro engano para uma sucessão de equívocos ser tomada como Verdade, afinal. Bucci prossegue em dobradinha com Janet Malcolm, ele em Existe democracia sem verdade factual?, ela em O jornalista e o assassino, por ele citado:
Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. (...) Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do “direito do público a saber”; os menos talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida.
O que mais dizer? Mea culpa. Mea maxima culpa. Indefensável. Fazer o quê? Resta-nos a pompa – deixo o juízo derradeiro a cargo do leitor. Limpo a garganta.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 19, é cristalina: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
Embora diplomados sejam seres de luz, infelizmente o termo “humano” vale para todo e qualquer homo sapiens que caminhe sobre a terra. Logo: “todo ser humano” significa “todo ser humano”. Atenção para os trechos “direito à liberdade de opinião”, “sem interferência”, “transmitir informações e ideias”, “por quaisquer meios”. Significam que: liberdade de imprensa vale não só para diplomados, mas para “todo ser humano”. E “independente de fronteiras”. Algum conspiracionista mais ansioso poderia imaginar que a Assembleia das Nações Unidas previra a ascensão da internet ainda em 1948. Mas era só a informação já querendo ser livre.
Ademais, pergunta-se: havia quem fosse contra? Contra a Declaração? Responde-se: evidente. Os derrotados. Nazistas e fascistas. Como até dia desses, aliás. Pois bem.
Injúrias, calúnias, difamações? Há. Ódio e sangue também (como vende). E não de hoje. Lá e cá. Roupa suja sempre foi especialidade da casa. Imagina o quiprocó que não daria caso fechassem veículos do yellow journalism – insumo, afinal, do Rei Mídias. Duas vezes Bucci:
A ausência de escrúpulos, que se esconde por trás de uma alegação fingida de que se fala em nome de uma tal “verdade”, vem de longa data. Assim como a mentira é tão antiga quanto a fala, a mentira de imprensa é tão antiga quanto a imprensa. Quando olhamos os jornais da virada do século XVIII para o século XIX na Europa e nos Estados Unidos, vemos um festival de calúnias e xingamentos sem nenhum compromisso com o equilíbrio, a ponderação e a objetividade. Os diários que conquistaram na prática a liberdade de imprensa primavam pela violência da linguagem e mentiram à vontade. A qualidade jornalística, não custa lembrar, só veio como consequência do exercício da liberdade, não o contrário.
Não à toa querem calar o que dissona. Transformar a internet em tudo aquilo que a internet foi criada para combater – e destruir. Reitero: basta o primeiro engano para uma sucessão de equívocos. De novo Muller-Maguihn:
…do ponto de vista das pessoas no poder, os últimos vinte anos [2012] foram aterrorizantes. Elas enxergam a internet como uma doença que afeta sua capacidade de definir a realidade, definir o que está acontecendo, o que, por sua vez, é usado para definir o que as pessoas sabem sobre o que está acontecendo e a capacidade delas de interagir com a realidade. (p. 37)
O PL das Fake News, a pretensa cura. Tachado por ONU e OEA, de cara, como uma ameaça à democracia, e contrário a vários tratados internacionais. O oposto do que Dilma Rousseff pretendeu ao sancionar o Marco Civil da Internet, sua última medida como presidente. Espionagem doméstica, coleta massiva de dados do povo... entre outros absurdos, como a definição em si do que é ou não fake news. Os tempos mudam.
Corria o longínquo ano de 2016 e a esquerda em peso se alarmava com a CPI dos Crimes Cibernéticos. “Analisando o relatório, fica claro que sua finalidade não é combater ‘cibercrimes’, já amplamente cobertos pela legislação em vigor. O objetivo é criar um sofisticado sistema de controle e censura da rede”, escreveu Ronaldo Lemos na Folha. Pergunta-se: algum tipo novo de crime surgiu de lá para cá que não esteja coberto pela legislação em vigor? Ou novo abandono? Controle e censura foram ressignificados?
Ou seria medida “excepcionalíssima”, só por mais duas semanas? Disse a Ministra Carmem Lúcia: "Se (...) isto se comprovar como desbordando para uma censura, deve ser imediatamente reformulada essa decisão no sentido de se acatar integralmente a Constituição e a garantia da liberdade, de ausência de qualquer tipo de censura." Ministra, com todo respeito. Mas a senhora sabe bem e transparecia tanto em gestos quanto em entonação: Não se excepciona uma cláusula pétrea. A senhora, certamente levada – como os demais – pela sanha do Ministro Alexandre de Moraes, foi cúmplice de censura prévia. Desbordou de berço. Censura que já calou jornalistas, humoristas, políticos. A esquerda (ou Moraes, trollando a esquerda) conseguiu a proeza de entronizar Monark como o baluarte da liberdade de expressão no Brasil. Algo meio Coca-cola sabor Kurt Cobain.
Assim, realmente, fica difícil para o povo acompanhar. Após décadas, séculos de doutrinação, não conseguem entender, por exemplo, as razões pelas quais ivermectina e acetilcisteína são alt-science mas ozonoterapia e candomblé são ciência do mais alto nível (filho de Ogum: presente). Não entendem por que uns podem quebrar tudo e outros nada (#Occupy: presente). Nem por que uns sempre puderam questionar a segurança das urnas e outros não (portador de memória: presente). O laptop de Hunter Biden, os nazistas do Regimento Azov e os biolabs norte-americanos na Ucrânia, todos (e mais um monte) tachados como fake news por meses, anos pela imprensa. Tudo propaganda russa (longe de ser flor que se cheire, faz-me rir). Treze raios na cabeça. O povo simplesmente não entende. Quanto menos confia. Maldito povo.
Que desastre. Que horror. Viramos garotos-propaganda da Big Pharma, a grande mídia se tornou a fonte mais confiável de informação e exigimos o controle que queriam nos impor em 2016. LHC, isso? Saudade de uns tapas bem dados na cara pelo FMI? De vanguarda a lacaios da Vanguard. Evidente que Davos apelaria para questões a nós tão caras de modo a conquistar nossa simpatia à guisa de backdoor, cooptar todo um sistema de pautas, assim cooptando tudo aquilo que nos torna humanos, e fazer o que bem entendam enquanto nos vendem a ilusão da voz de comando. Enquanto tão-somente varrem para baixo do tapete toda a sujeira sem dar-lhe solução. Neonazistas, pedófilos, terroristas (os reais, aqueles a quem não damos atenção), os “Cavaleiros do Infoapocalipse”, não deixarão de existir nem sequer cairão no ostracismo. Apenas sumirão de vista. Banidos das redes, não incomodam. Ao que parece: basta.
Aspas minhas agora, de um passado recente: “Quem irá lutar contra o controle (do Estado/bilionários/patriarcado et al) se quem lutava antes ora é quem o cobra?”
Adivinha. Pois então. Das cooptações, quiçá a mais cara.
Uma coisa é certa: a caixa de Pandora, reitera Natalia Viana, foi aberta. Tarde demais, “impossível agora conter o fluxo de jornalismo independente inspirado pelo trabalho do WikiLeaks.” E isso, gostem ou não, também inclui jornalismo independente de direita. Ou isso ou uma medida das mais simples: paredão. Fuzilar de uma vez todos que pensam diferente. Já sabemos bem, contudo: não funciona. Que não duvidem: a internet há de sobreviver. Há de encontrar uma saída, se já não encontrou – e ulterior à Deep Web (vide o protocolo Nostr, underground emerso ora ponta do iceberg rasgando a hiperrealidade de grão em grão, todos pixelados, lip line duna abaixo). “A rede interpreta a censura como um dano e a contorna”, ensina John Gilmore, fundador da Electronic Frontier Foundation.
Pois, se nos esquecemos do que de fato importa para muito além das narrativas, daquilo por que se lutou durante séculos, e razão de estar-se hoje aqui ainda lutando, há quem não se esqueça – e Jérémie Zimmermann refresca nossa memória – que “uma internet livre, aberta e universal é provavelmente a ferramenta mais importante que temos em mãos para resolver os problemas globais, que protegê-la é provavelmente uma das tarefas fundamentais da nossa geração.” (p.127)
Assim como, na Idade Média, protegeu-se a custo de sangue uma velha conhecida:
...quando Johannes Gutenberg inventou a prensa tipográfica, ela chegou a ser proibida em algumas regiões da Alemanha e foi assim que acabou se espalhando por todo o país, porque, quando era proibida em uma região, eles iam a outra jurisdição. Não estudei isso em detalhes, mas sei que eles começaram incomodar a Igreja católica por estarem rompendo monopólio dos livros impressos e, quando tinham problemas com a lei, se transferiam para uma região onde a imprensa não era proibida. De certa forma, isso ajudou a propagar a imprensa. (p. 39)
Os neo-inquisidores parecem já estar mui bem definidos no tabuleiro, de ambos os lados. Passando da hora de dar um passo adiante, adentro, abaixo. Pro tip: a realidade não é bipolar. Talvez borderline. A história julgará, sabemos de cor. Se é verdade que a prensa “ensinou as pessoas a ler”, pontua Zimmermann, “a internet ensinou as pessoas a escrever.” Nem sempre o que se escreve é carregado de lirismo. Nem sempre o que se escreve é interpretado de acordo com as intenções do autor.
Luther Blissett, a... consequência?
“Um confronto indireto: de um lado, um herege subversivo que opera sob vários nomes, e, de outro, um agente provocador católico que se infiltra nos movimentos (...), espalhando desinformação entre os radicais, anabatistas, servos e camponeses.” Soa familiar? Ah, o agente provocador é um anônimo, que finge “ser um cara com acesso a informações confidenciais muito valiosas, do mais alto nível de poder do Estado.”
Nada?
Quem descreve as personagens é Wu Ming 1. Com o fim do Projeto Luther Blissett em 1999, cinco escritores do núcleo bolonhês (Roberto Bui [1], Giovanni Cattabriga [2], Federico Guglielmi [4], Riccardo Pedrini [5] e Luca Di Meo [3, recém-falecido]) resolveram seguir juntos e criaram a Fundação Wu Ming – “anônimo” em mandarim. Antes, todavia, o canto do cisne. Mal sabiam, mas seu estilo literário acabaria sendo confundido com o de Umberto Eco, a quem se atribuiu o romance da sinopse em questão, assinado por Blissett. Zênite da vanguarda. E assim como libertarianismo não se confunde com liberalismo, a Wu Ming Foundation não se confunde com o QAnon. Explica-se: emoji dando de ombros. Duzentas mil cópias vendidas de Q, O Caçador de Hereges, e inevitável que uma acabasse parando no 4chan. Nem precisaria ser discípulo de Blissett para que nosso nym inventasse de trollar o primeiro patriota que lhe aparecesse pela frente. Isso, claro, ao que tudo indica. Do enredo ao “Q”, tudo pode não passar de mais uma das tantas coin-cidências que temos visto nos últimos tempos.
Ou... tudo o que os Wu Mings preferem nem cogitar: a zoeira pode não ter sido zoeira. “Como os Beatles se sentiram quanto à família Manson ter usado as letras de ‘Helter Skelter’?”, questiona(-se) Wu Ming 1. “Da feita que um romance, ou uma música, ou qualquer obra de arte cai no mundo, não tem como evitar que as pessoas citem o trabalho ou façam referência a ele.” Exemplo claro abaixo, em entressafra do “novo” Q:
Se Q(Anon) foi fruto de um troll ou de genuína admiração por Qoèlet (ou NDA), fato é: Q conseguiu deter, ao que parece, na prática, o “frade do demônio”. Novidade nenhuma, portanto, tudo permanece igualzinho ao narrado no romance:
Dinheiro, compadre, só dinheiro e os negócios com aqueles porcos de Roma. Os bispos com todas aquelas putas e filhos para manter! Grana, pode estar certo, que os príncipes, os duques, aqueles patifes, não pensam em outra coisa. Antes tiram tudo dos caipiras, depois nos mandam surrar aqueles que se enchem o saco. Acho que estou velho demais para estas bostas. Fodidos! Agora, que eles iam apontar os canhões contra os príncipes e os puxa-sacos do Papa, tinham mostrado os colhões, os caipiras: queimavam os castelos com toda aquela fartura, comiam as condessas, destripavam os padres nojentos! É, falavam sempre em Deus, mas quebravam tudo, até eu quase acreditei, mas já sabia como as coisas iam acabar, não sobra nada para os esfarrapados. Para nós, sempre aquelas quatro moedas de merda. E isso, é para eles – peida, ri, bebe. – Vá tomar no cu!
Não obstante todos os alertas, todas as denúncias, todas as revelações. O Papa estava nu, nuzinho. Se, mesmo cientes, preferimos desviar os olhos, houve quem cooptasse o olhar. Se abandonarmos um livro na estante, alguém há de encontrá-lo. Se consideramos coisa de adolescente o que tanto pregávamos, houve quem escutou. E levou a sério. O problema nunca foi o excesso de informação – tudo no universo é informação –, mas como a processamos. Se orientados e orientandos, constante troca, se por abandono, ao acaso, tropeço nos enjeites, ou de colherinha. Aviãozinho. Na boquinha. Apadrinhados por uma suposta Vanguarda nos dizendo o que seria melhor para nós. Do que o povo precisa. O que o povo quer. O povo sempre subestimado. Abandonado por entre as sobras de uma retórica do zelo.
Talvez o tempo das vanguardas tenha de fato chegado ao fim e seja hora de guardar a pompa de volta no bolso. Jacob Appelbaum, desenvolvedor do TOR, é quem explica: “…о movimento peer-to-peer é explicitamente contra tal vanguarda. É a ideia de que somos todos colegas [peers] e podemos compartilhar coisas uns com os outros.” (p. 77) A informação quer ser livre – e será. O povo: idem. Não adianta. Repita.
Destruir para reconstruir.
Já o disse Joey Comeau, em resposta às aspas de Gandhi, na HQ A Softer World: Mudança? “Foda-se. Seja o incômodo que você quer ver no mundo.”
Caco Ishak é jornalista e tradutor brasileiro e jura ser cypherpunk embora mal saiba ligar um computador. Já encarnou, todavia, Luther Blissett várias e várias vezes quando mancebo. Julgou válido se valer do espaço para divulgar suas mais recentes peripércias: poemas inéditos na Aboio, outro publicado na revista norte-americana Punk Futuro, a leitura de “filha de uma puta virgem sob a mira da santa crista-de-galo em eclosão” no podcast Conta Conto, a tradução de Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, de John Berendt, para a DarkSide Books, e a participação na coletânea Na Tábua, organizada por Paulo Scott e Fábio Zimbres, publicada pela Lote 42.