As tantas aspas da Vanguarda (parte 2)
Socialiteing e barbarismo: quando triunfa o outono no jardim de uma Rosa só.
Teve época que eu piamente acreditei que bastava ter opiniões de esquerda pra ser de esquerda. A ideologia vinha primeiro. É a política alucinatória. (…) Como recuperar a humildade sem cair na inferioridade? E como recuperar as pessoas que eu pisei nessa cavalgada das valquírias? (Ana Cristina Cesar)
Um corredor qualquer da FFLCH, Universidade de São Paulo, 1968: “A Rosa Luxemburgo, quando aparecia no debate, era sempre como critério moral de radicalismo. E também era um teste para saber quem era autoritário e quem era libertário.” Quem topa, hoje? Paulo Arantes, com certeza – aqui, em citação de Gerhard Dilger na apresentação de O Preço da Liberdade, organizado por Jörn Schütrumpf.
“Em nome da Rosa”, o título.
Tantas aspas, tão mais dotadas de autoridade e desenvoltura e coerência, que prefiro nem as macular com comentários. Serei fichamento, quebra-cabeça. Nas palavras do próprio Dilger, portanto, Luxemburgo, “membro ativo de dois partidos socialistas, jornalista polêmica e oradora de língua afiada, educadora popular, internacionalista convicta – e, naturalmente, uma mulher do seu tempo”, pensava “inseparavelmente socialismo e liberdade, democracia e revolução”, daí, para o autor, ela ser do (máximo) interesse do Brasil, “a todos aqueles teimosos que ainda acreditam que vale a pena lutar por um mundo diferente.” Presente. Agora só resta entender, “com Luxemburgo, que, em última análise, o socialismo real fracassou por causa da falta de liberdade e democracia já no início” para que tenhamos, a esquerda, “uma chance de sair da defensiva em que se encontra há décadas.” Ainda.
Sim, meus caros, minhas caras, “a camarada Luxemburgo bagunça tudo” – declaração atribuída a Karl Kautsky, conforme lembra Isabel Loureiro em live para a Boitempo, por ocasião dos 151 anos desde que Rosa brotou. Rosa quem, ainda Loureiro, “rejeitava separação entre vanguardas e as massas”, adepta de um “marxismo não dogmático”, quem acreditava não haver “socialismo sem democracia e vice-versa, nem socialismo sem liberdade.” Pois, se é verdade que “as contradições do capitalismo vão levar naturalmente ao colapso do capitalismo”, também foi o nosso levado por nossas próprias.
É urgente que falemos mais sobre Rosa Luxemburgo, é preciso difundi-la, espalhar suas sementes, repovoar nosso Mundinho da Lua com suas ideias. Precisamos de mais Vanguardas que assim o façam. “Mário Pedrosa justamente publicou o texto de Rosa, ‘A Revolução Russa’, na Vanguarda Socialista, em 1946, numa tradução de Miguel Macedo”, observa Loureiro, agora já entrevistando Paul Singer em Socialismo ou Barbárie, como organizadora do volume. É urgente que ponhamos em prática o que Rosa pensou:
...para Rosa Luxemburgo, quem dirige a revolução é o que ela chama “as massas”; são os próprios trabalhadores, os homens, as mulheres, os camponeses, os jovens, enfim. A direção política, que é tão importante para Trotsky e Lênin, não é tão importante para ela. Ela acha que essa direção tende a segurar, tende a refrear porque – desculpa, agora é uma coisa minha, é uma nota de rodapé até melancólica porque ela morre tentando fazer isso – porque foi o levante infeliz, lá em Berlim, que propiciou as condições do assassinato dela. Ela foi contra porque sabia que não havia nenhuma perspectiva de o levante ser vitorioso. Como dirigente ela tentou segurar “as massas”, mas não conseguiu. (Paul Singer, p.24)
Sendo curto e grosso, como Luxemburgo o foi: justo seu “socialismo ou barbárie”. O socialismo segundo Rosa, evidente. No testemunho de Michael Löwy:
...a ação revolucionária, a ação consciente, a ação do proletariado, das massas, do partido é decisiva. É ela que vai decidir se o processo histórico vai numa direção ou no sentido contrário – para o socialismo ou para a barbárie.
Outra coisa importante é o próprio conceito de barbárie. Em uma leitura ingênua você pode dizer que é uma regressão ao passado – vamos voltar a viver no mato, como aquelas tribos bárbaras, germânicas correndo na floresta. Obviamente não é nada disso. Quando ela fala em barbárie está falando de uma barbárie moderna e diz, por exemplo: “Essa guerra mundial é um exemplo de barbárie”. Então é isso: é uma barbárie moderna e não uma regressão. (apud Loureiro, p.39)
Barbárie essa que, hoje, é representada tanto pelo fascismo interno – de um Bolsonaro enquanto rota alternativa (in)orgânica ao golpe constitucionalista e à revanche ultranacionalista militar, ambos consequência de uma política socioeconômica neoliberal corrupta de décadas – quanto pelo externo, das guerras bélico-sancionatórias entre blocos e do controle centralizado dos organismos autoempossados de governança global. O bom e velho criamos o problema, providenciamos a solução. Ainda que placebo. Sem a participação nem sequer a consulta popular, quando não simplesmente ignorada. E, aqui, Luxemburgo dialoga em fina sintonia com Marx, um manual de resgate do precariado de Ruy Braga, ponto a ponto. Para Rosa, ainda segundo Löwy:
...há uma relação íntima fundamental entre a prática, a ação da classe trabalhadora, do proletariado, e a tomada de consciência. Práxis e conscientização são dialeticamente inseparáveis. Quanto mais o explorado age, se organiza e entra em processo de luta, greve etc., mais ele se conscientiza. Quanto mais ele se conscientiza, mais ele age contra o capital e assim por diante. Há uma dialética. Eu acho muito importante essa visão que ela tem da práxis. A práxis é o motor no qual a experiência e a consciência se desenvolvem simultaneamente. (...) Muito relacionado com isso vem a famosa questão da democracia e da liberdade. A classe explorada, os trabalhadores, só vão conseguir se transformar em sujeito histórico através da sua própria ação, da sua própria experiência. Nenhuma vanguarda, nenhuma elite revolucionária pode substituir a ação das próprias massas, dos próprios trabalhadores, da própria classe. Daí a crítica que ela faz a todas as concepções vanguardistas, substitucionistas, em que a vanguarda se propõe a fazer a revolução no lugar dos trabalhadores, ou instaurar o socialismo e exercer o poder em nome do proletariado. (p. 46)
As tantas as aspas da “vanguarda”. De nada vale nossa condescendência. De nada vale nosso “socialismo” sem liberdade. De nada vale nossa “democracia” sem voz. Vamos, então, por pontos. Uma “internacionalista convicta”, que pensava “inseparavelmente socialismo e liberdade”. Pois vejamos.
Sobre o inferno enquanto liberdade do outro
Em tempos de censura (sim) nas redes sociais e de ministérios da verdade, verdades estas cada vez mais distantes das verdades vivenciadas na prática pelo povo, tudo sob os aplausos de parte da dita vanguarda contemporânea, quando não por ela desencadeado, muita, mas muita atenção, total, ao que Luxemburgo escreveu em “A Revolução Russa”:
Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio.
Angela Mendes de Almeida observa que o artigo, escrito na prisão, só foi publicado por Paul Levi, “advogado e companheiro”, após a morte da espartaquista “e em seguida a graves divergências dentro do Partido Comunista Alemão (KPD) e com a Internacional Comunista, (...) o que desencadeou a fúria de Lênin.” (apud Loureiro, p. 49) Quiproquó ao qual retornaremos em breve. Sigamos tendo em mente o outro mais imediato. Reitera Mendes de Almeida:
Essa frase da Rosa Luxemburgo – “A liberdade é, em primeiro lugar, a liberdade daqueles que discordam” – diz respeito aos direitos das minorias. Se pensarmos na história da corrente bolchevique, não se pode dizer que há uma data para começar. Eu, pessoalmente, percorrendo alguns textos sobre a história do partido bolchevique, tenho a convicção de que isso existiu sempre no bolchevismo. Essa intolerância com a opinião divergente está baseada na ideia da disciplina e do centralismo democrático, mas também na convicção de que o divergente representa os interesses de uma classe alheia ao proletariado. (p. 62)
Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o povo, o proletariado, o precariado, seja imune a influências externas, tanto quanto nós, peões intelectuais, nem é esse o ponto. Aqui, lateja: o povo, o proletariado, o precariado, não obstante, sabe onde lhe dói o calo e não há cristais que adornem nem dourem quanto menos calcem a abóbora nessa meia-noite e meia em loop a cada três minutos trabalhados. Os interesses lhe são tão próprios quanto os da classe alheia, sim, variam única e intercambiavelmente os fins, per natura os meios. É preciso, no entanto, e urgente, amá-lo para além da palavra, as diferenças que nos fazem plurais, recuperar o poder do livre convencimento, reempoderar o argumento – ou “emponderar”, como reza o typo tornado meme, emponderá-lo. Se o que defendemos lhe é bom, afinal, não precisamos coagi-lo a nada. Revolução e reforma. Reforma que, “com uma teorização diferente sobre a presença do reformismo nas massas”, para Luxemburgo não corresponderia “à presença da influência de pequeno-burgueses ou a uma suposta traição de classe”:
...e sim a um estágio da consciência proletária inerente à essência da luta socialista. Enquanto os objetivos dessa luta estão além do sistema, é “na luta cotidiana com a ordem estabelecida, isto é, dentro dos limites desta ordem”, que as massas podem se fortalecer e se organizar. (Mendes de Almeida apud Loureiro, p. 62)
O problema, portanto, nem estaria no bolchevismo em si, que, para Luxemburgo havia salvo “a honra do socialismo internacional, enquanto que os outros socialistas participaram na guerra imperialista, cada um apoiando o seu governo.” Na Alemanha, o Kaiser; na Rússia, o Czar, “os outros apoiaram a República capitalista francesa colonialista.” (Löwy apud Loureiro, p.46) O problema estaria, sim, nos “erros dos dirigentes bolcheviques, de Lênin e Trotsky”. Segundo Löwy:
Eram os camaradas Lênin e Trotsky que estavam cometendo, na opinião dela, um erro grave porque eles, em nome da ditadura do proletariado, estão impondo a ditadura do partido. E estão esvaziando os sovietes, os conselhos operários e camponeses de seu significado democrático, porque estão virando sovietes de um só partido. E estão restringindo as liberdades democráticas. É aí que ela tem aquela famosa frase: “Sem liberdades democráticas nós não podemos falar de um processo de construção do socialismo.” A democracia é inerente ao próprio conceito de socialismo. Socialismo é o exercício, pelos trabalhadores, do seu poder sobre a economia, a sociedade, a política. Esse é o sentido do socialismo. É um texto fundamental, de uma revolucionária internacionalista, anticapitalista, intransigente, mas para a qual a democracia e as liberdades são componentes essenciais do socialismo. (p.46)
Eis “A Causa da Derrota” (1902), erros e contradições que remontariam ao “desmoronamento repentino da grande ação da classe operária belga”. Ou, perfeição à guisa de subcapítulo: “Quando Triunfa o Oportunismo”. Oportunismo que, para Luxemburgo, tem sujeito mui bem definido:
Todas estas contradições parecem insolúveis no entanto se analisa a tática socialista em si na campanha belga, porém elas se explicam muito simplesmente enquanto se considera o campo socialista em sua união com o campo LIBERAL. Antes de tudo foram os liberais quem determinaram o programa dos socialistas na recente luta. (...) Os liberais ditaram aos socialistas os MEIOS da luta, erguendo-se CONTRA a greve geral inclusive antes que houvera eclodido, impondo-lhes os limites legais quando se desencadeou (...) A tarefa dos chefes socialistas vinha sendo transmitir à classe operária as bandeiras lançadas por seus aliados e fazer a música da agitação que correspondia ao texto liberal. (...) Assim, em toda a campanha, os LIBERAIS aliados com os socialistas aparecem como os verdadeiros CHEFES, os socialistas como seus submetidos executantes e a classe operária como uma massa passiva, arrastada pelos socialistas a reboque da burguesia. A atitude contraditória e tímida dos chefes de nosso partido belga se explica pela sua posição intermediária entre a massa operária, que se lança na luta, e a burguesia liberal que a retém por todos os meios. (Grifos todos dela)
Cooptação do outro é coisa séria na dialética histórica. Não à toa, tantas erísticas cotidianas. Quem mora nos detalhes é o oportunismo. Visita, desde sempre, foi o diabo.
O conservadorismo radical da social-democracia
Poucos somos os leigos que disto sabem, mas “social-democracia” era o nome pelo qual o marxismo revolucionário se fazia conhecido antes de ser sequestrado pelo liberalismo burguês a fim de conter as reformas socialistas. E não à toa. Em “A Teoria Marxista e o Proletariado”, de 1903, Luxemburgo explica:
O mundo burguês há muito tempo está espantado pelo extraordinário, insuperável e constante crescimento da social-democracia. Às vezes, isoladas mentes senis ou ingenuamente infantis são encontradas, as quais, estando cegas pelo extraordinário sucesso moral de nossas políticas, aconselham a burguesia a nos tomar como um “exemplo” e a beber profundamente da sabedoria e idealismo misteriosos da social-democracia. Eles são incapazes de entender que o que é uma fonte de vida e vigor, uma fonte da juventude para o desenvolvimento da classe trabalhadora é, para os partidos burgueses – veneno mortal.
Não é de hoje que viagens de empregadas domésticas para Disney ou filhos de porteiros se formando em medicina incomodam neoliberais, pequenos luxos que, de fato, são o “que nos dá força moral, para sofrer corajosa e ridicularmente e nos libertar das repressões mais cruéis”. A razão, para além do óbvio?
É, talvez, a teimosia dos pobres atrás de pequenas melhoras em suas condições materiais? O proletariado moderno não é um comerciante, não é um pequeno-burguês pronto para tornar-se um herói pelos confortos miseráveis do dia-a-dia. A falta de idealismo, a sóbria limitação dos sindicatos ingleses demonstra o quão pouco incapaz de criar uma grande explosão moral entre o proletariado é o mero cálculo por pequenas vantagens materiais.
Isso, em 1903. Percebe? Quase 120 anos depois e, não, o precariado jamais foi um microempresário. Nem antes nem após o golpe. Ou a sucessão destes. É o que é. Precariado. Quase 120 anos depois e... o que, então, pôde ter dado tão errado? “Em que emaranhado vocês transformaram a doutrina de Marx, que se caracteriza por flexibilidade mas também pela acuidade, mortal como lâmina de aço damasceno”, questiona Luxemburgo em “Discurso sobre o papel da burguesia na Revolução de 1905/1906 na Rússia”, de 1907:
Vocês transformaram essa doutrina, que representa as asas da águia, num cacarejar preocupado de uma galinha que procura uma pérola no lixo do parlamentarismo burguês! Pois o marxismo contém dois elementos essenciais: a análise crítica e o elemento da vontade ativa da classe trabalhadora como fator revolucionário, e quem só quiser transformar a análise e a crítica em ação não representa o marxismo, mas sim uma miserável e pútrida paródia dessa doutrina.
Bagunça tudo, indeed, a camarada Luxemburgo. Maria Baderna de carteirinha. Se não é verdade que 2+2 pode não ser 4, o mesmo talvez não possa se dizer sobre 1+1=3:
Da mesma forma vemos hoje a unilateralidade e estreiteza da ala esquerda da social-democracia russa como resultado natural da história do partido russo nos últimos anos e estamos convencidos de que esses traços não podem ser aniquilados por quaisquer meios artificiais, mas que só poderão se equilibrar quando o princípio da autonomia de classes e da política revolucionária do proletariado estiver suficientemente firmado e tiver vencido de modo definitivo entre as fileiras da social-democracia russa. Por isso, almejamos conscientemente garantir a vitória dessa política, não em sua forma bolchevique específica, e sim na forma em que foi concebida e é conduzida pela social-democracia polonesa – a forma que se aproxima mais do espírito da social-democracia alemã e do espírito do verdadeiro marxismo.
Polarização é burocracia do cotidiano e toda burocracia é controle. De volta aos erros e contradições, Osvaldo Coggiola pontua, em “Realidade e lenda do bolchevismo”, que, “para alguns autores, existe uma vinculação direta entre o Que fazer? e o ulterior ‘sectarismo’ ou ‘burocratismo’ bolcheviques: ‘O sectarismo potencial que Rosa Luxemburgo havia notado nas concepções de Lênin manifestou-se claramente desde a Revolução de 1905’.” (Le Blanc apud Coggiola) Outro a discorrer sobre o tema foi Ernerst Mandel, para quem “é evidente que Lênin subestimou no decurso do debate de 1902-1903 os perigos para o movimento operário que podiam surgir do fato de se constituir uma burocracia no seu seio.”
Burocracia para bem além de 140 caracteres enclausurados entre hashtags, cuja “crença numa unificação partidária possibilitada pela revolução, por sua vez, remete a uma concepção mais geral acerca do partido”. Coggiola destaca as palavras do próprio Lênin, “logo depois da ruptura de 1903”:
(Trotsky) esqueceu que o Partido deve ser apenas um destacamento da vanguarda, o dirigente da imensa massa da classe operária, que no seu conjunto (ou quase) trabalha “sob o controle e sob a direção” das organizações do Partido, mas que não entra inteiramente, e nem deve, no “Partido” (apud Coggiola; “as aspas – irônicas – são de Lênin”).
Reitero: o que pôde ter dado tão errado? “Para Lênin, partido, vanguarda operária e classe operária não se identificavam”, explica Coggiola. “Na concepção de Rosa Luxemburgo, diversamente: ‘A social-democracia não está ligada à organização da classe operária: ela é o próprio movimento da classe operária’ (Luxemburgo apud Coggiola). Embora pondere: “o que tinha mais que ver com as condições da Alemanha do que com uma supervalorização da ‘espontaneidade das massas’.” Vai além:
Apesar de todas as críticas recebidas, e apesar de todas as precisões realizadas, Lênin ironizou seus críticos: “Afirmar que a Iskra (de 1901 e 1902!) exagerou na ideia de uma organização de revolucionários profissionais é como dizer, depois da guerra russo-japonesa, que os japoneses faziam uma ideia exagerada das forças militares russas, e que se preocuparam demais, antes da guerra, em lutar contra essas forças.” Eis a razão decisiva do bolchevismo.
Dedo na ferida e, de novo, a incapacidade para o diálogo, para as críticas. Nascia o “homo bolchevicus”, das cinzas da social-democracia revolucionária:
Os problemas políticos da social-democracia russa, confrontados com o movimento revolucionário das massas, em 1905, já se situavam em um nível superior em relação às outras seções da II Internacional. Nisso consiste a particularidade do bolchevismo, o que nada tem que ver com uma suposta teoria acerca do “Partido, com maiúscula, (que) constitui a grande e ambígua contribuição russa à história contemporânea”, também chamada de “o Partido: uma entidade metapolítica totalmente diversa de tudo que tinha sido visto até então na variada cena dos movimentos socialistas europeus” (Bettiza apud Coggiola), dando nascimento a uma nova variante antropológica: o homo bolchevicus!
Incapacidade que, evidente, acabou por se traduzir em natural imposição:
Em 1912, os bolcheviques lutaram para se impor como únicos representantes do POSDR no Congresso Socialista de Basileia. Em 1914, antes da Guerra Mundial, devido ao isolamento internacional dos bolcheviques (inclusive em relação à ala esquerda da Internacional Socialista, cuja dirigente, Rosa Luxemburgo, aliara-se aos mencheviques e ao “Bloco de Agosto” liderado por Trotsky), os bolcheviques admitiram uma nova e nunca realizada “conferência de unificação” do socialismo russo. Lênin já era, no entanto, consciente da projeção internacional da “cisão russa” e, depois da capitulação dos principais partidos da Internacional Socialista diante da explosão da guerra em agosto de 1914, proclamou desde finais desse ano a necessidade da luta por uma nova Internacional, a terceira (ainda não chamada de Comunista) (Haupt apud Coggiola).
Não é de se estranhar, portanto, o apagamento de Luxemburgo e seu posterior “cancelamento” pelo Império Soviético. Conforme lembra Valério Arcary, em “Uma irredutível internacionalista”:
Foi Josef Stalin quem encabeçou uma campanha de difamação de Rosa Luxemburgo, em um artigo sinistro, “Problemas da História do Bolchevismo”, em que reescrevia a história de acordo com suas conveniências, e no qual decretou, contrariando as mais incontroversas evidências, que Rosa seria responsável pelo imprescritível pecado teórico da revolução permanente, e que Trotsky, na verdade, teria plagiado Luxemburgo.
O tempo, sempre ele, porém, não tardou em lhe fazer jus. Em especial, os expoentes da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Conforme Isabel Loureiro pontua, entrevistando Michael Löwy:
Marcuse, por exemplo, faz uma referência explícita a Rosa em Contra-revolução e revolta, mas é uma coisa bem lateral. Ele menciona numa nota de rodapé a crítica de Rosa à ideia de disciplina imposta à classe trabalhadora em nome da autodisciplina da classe operária. E, por exemplo, em O ensaio sobre a libertação, há formulações claramente luxemburguistas no sentido de que as massas adquirem consciência na luta, pela sua própria prática etc. Eu defendo a “tese” de que Marcuse era luxemburguista de coração. Ele estava em Berlim, quando Rosa falou pela última vez, antes de ser assassinada. (...) Desde o início ele tem simpatia por Rosa Luxemburgo, e quando tenta pensar em termos políticos, inevitavelmente surgem essas referências a ela. (Loureiro, p. 37)
Ao que Löwy complementa:
E tem o caso de Walter Benjamin, que é um pouco especial porque ele, curiosamente, descobre a revolução quando ela já acabou, e, através de Lukács, vai descobrir Rosa Luxemburgo. Não há muitas referências a ela, mas há uma, indireta, que é fundamental; está nas “Teses sobre o conceito de história”: “Os revolucionários alemães da Liga Spartakus foram dos poucos que tiveram consciência de que a luta de libertação dos oprimidos é uma luta de séculos e de milênios e que ela se alimenta da memória dos mártires do passado.” Eles foram dos poucos que tiveram essa consciência, por isso chamaram sua organização de Liga Spartakus – em homenagem ao levante dos escravos romanos. (Löwy apud Loureiro, p.37)
Avisos não faltaram. Como Lourenço Mutarelli declarou faz pouco: “não sou um exemplo, sou uma advertência”. Rosa Luxemburgo foi a maior delas.
Espartaquistas, do lixo ao luxo, uni-vos!
“Morra o salariato!” resume bem a bagunça e a tragédia do escravo assalariado em “O Que Quer a Liga Espartaco?”, de 1918:
Face esta desordem sangrenta e esta catástrofe pasmosa, somente o socialismo supõe uma ajuda, uma solução e uma salvação. Unicamente a revolução mundial do proletariado pode pôr ordem neste caos, dar trabalho e pão a todos, pôr fim ao dilaceramento recíproco entre os povos e dar paz, liberdade e cultura verdadeira a uma humanidade saudável. Morra o salariato! Eis o lema do momento. Que o trabalho cooperativo substitua o trabalho assalariado e a dominação de classe. Os meios de producção não devem ser o monopólio duma classe para se tornarem bem comum. Chega bem de exploradores e explorados. Que se regulamente a produção e a distribuição dos produtos no interesse da comunidade. Abolição, tanto do modo actual de produção, de exploração e roubo, quanto do comércio actual, que não passa de engano. Trabalhadores livres cooperando no lugar de patrões e escravos assalariados! Que o trabalho não seja um tormento, porque dever de todos! Para todos os que cumprem com os seus deveres para com a sociedade, uma existência digna! A fome não seja mais a maldição do trabalho, mas a punição da preguiça!
A guerra derradeira, segundo Luxemburgo:
Somente numa sociedade assim serão extinguidos a servidão e o ódio entre os povos. Só quando esta sociedade se concretizar, o homicídio deixará de manchar a terra. (...) Nesta hora, o socialismo é a única salvação da humanidade. Sobre uma sociedade capitalista que afunde brilham, como uma advertência ardente, as palavras do Manifesto Comunista: “Socialismo ou queda na barbárie!”
Uma síntese cirúrgica do original de Marx, a bem da verdade:
A expressão de Rosa Luxemburgo: “Sozialismus oder Untergang in der Barbarei”, não se encontra no Manifesto Comunista. Supõe Hermann Weber que pode tratar-se duma alusão sintética ao trecho do Manifesto Comunista que diz: “opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta”. (Nota de José André Lôpez Gonçâlez)
Entra em cena a “revolução mundial do proletariado” como autor da reescritura da história de toda a humanidade, não mais como personagem de sua cooptação. Eis a diferença entre “globalismo” (neoliberal, barbárie) e “internacionalismo” (socialista, solução libertária). De volta a Angela Mendes de Almeida:
Depois da revolução de outubro de 1917 – que gera um enorme entusiasmo inclusive em Rosa Luxemburgo, que nesse momento estava presa –, o que era colocado pelos bolcheviques e por Lênin, em primeiro lugar, era a tarefa de fazer uma nova Internacional. O Primeiro Congresso da Internacional Comunista não passou de uma reunião bastante improvisada e longa. Alguns documentos desse congresso têm a data de janeiro, outros de março. O delegado alemão, Eberlein, já tinha deixado a Alemanha na data da fundação do Partido Comunista Alemão e levava instruções de Rosa Luxemburgo e da Liga Spartakus para não aprovar a criação de uma nova Internacional, consigna que não pôde levar adiante por estar em completa minoria. Os dois acontecimentos, portanto, dão-se quase em paralelo, mas não havia nem as comunicações, nem os transportes hoje existentes. Então eles não influenciaram diretamente um ao outro. Pela mesma ordem de razões, Rosa era contrária à criação do Partido Comunista na Alemanha, mas cedeu às pressões e acabou se entusiasmando com a combatividade dos delegados. (apud Loureiro, p. 52)
De igual modo, Mendes de Oliveira acredita que toda revolução que se preze tem construção local e que não seria hora de uma “nova Internacional”:
Acho que temos que tomar pé nessa nova situação do capitalismo, completamente diferente, não só do período que estávamos analisando, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, como de todo o período posterior à Segunda Guerra Mundial até os anos 1980. Nesse contexto surgem novas tendências que estão à esquerda, mas não são propriamente socialistas, nem anticapitalistas, que querem apenas melhorar o capitalismo. Em tese o capitalismo poderia melhorar, ele já esteve melhor. Hoje está pioradíssimo. (...) Acho que vivemos hoje um momento de resistência. É claro que tem que haver contatos internacionais, atos em comum, mas a resistência tem que se construir localmente, sobre a base dos problemas reais das classes e setores que mais estão sofrendo. (apud Loureiro, p. 67)
Como, afinal, tentar entender o outro mais distante se ainda não somos capazes de entender nem sequer o vizinho, o empregado, o “microempresário” que nos serve na praia? O calo pode até doer no mesmo ponto, mas para se conectar os mais longínquos pontos é preciso primeiro compreender o que nos diz cada dor, a experiência individual para dela se partir rumo a um coletivo de experiências:
Por exemplo no Brasil, que nesse sentido é um caso extremo de despolitização das massas, esses excluídos e oprimidos estão erigindo um mundo ao qual nós não temos acesso. Nós falamos uma língua e eles falam outra. Nós, a classe média, os partidos de origem marxista, os operários sindicalizados à esquerda, etc., falamos uma língua à qual eles não têm acesso; e eles falam uma língua à qual nós não temos acesso. É como se houvesse dois países no Brasil – duas nações. Então acho que a ideia de uma Internacional não se coloca. (apud Loureiro, p. 67)
Isso, porém, em 2015. Sete anos depois, após uma pandemia, o fortalecimento de fascismos nacionais e globais, o mundo à beira de uma recessão e promessas de um Helenismo sintético até 2030, pergunto-me o que não teria mudado também aí. Quando bilionários se valem de uma sucessão de crises para dobrarem suas fortunas enquanto a população mundial fica mais e mais impotente diante de fossos mais e mais largos. A Internacional socialista, no fim, nada mais foi que uma resposta ao monopólio global do capital financeiro. Conforme salienta Michael Löwy: “A resistência local e nacional é necessária, mas insuficiente: um sistema planetário tão perverso deve ser combatido em escala planetária. Em outras palavras, a resistência anticapitalista deve ser globalizada.”
E, veja bem, nada contra o luxo aqui. Já o dissemos antes: filé e champanhe. Isabel Loureiro parece concordar, bem como a própria Luxemburgo:
Há uma carta de Rosa a Sonia Liebknecht em que ela comenta uma crítica de Clara Zetkin (a feminista de carteirinha da social-democracia alemã) a uma personagem literária feminina que não era útil para nada. Rosa tece alguns comentários bem interessantes (...) E conclui: “...Sou a favor do luxo sob todas as formas.” Esse tipo de intervenção é incomum no interior do movimento comunista e no interior da esquerda em geral, que tem uma tendência ao ascetismo, a sofrer de sentimento de culpa. (p.71)
O problema aqui, portanto, para variar, é o luxo nas mãos de poucos, pouquíssimos, cada vez em número menor. O problema é a ilusão imposta por esses pouquíssimos de que isso seria de algum modo justificável. O problema é acreditarmos na ilusão, levados por uma narrativa enfeitada com flores artificiais e ofertadas por deusas Socialites da Vanguarda. Daí a necessidade de revermos nossos conceitos, tudo que porventura recaia no que a maioria (bolchevique) tome como verdade em demérito da minoria (menchevique). Nada que nos seja alheio é capaz de substituir nossa própria desgraça. Problema antigo. Conforme reitera Isabel Loureiro: “Lênin, citando Kautsky, diz que a consciência socialista é introduzida de fora nas massas por uma vanguarda de revolucionários, oriunda da burguesia.” Grifo nosso, pois aspas de extrema importância para a terceira (ou quarta) parte desta série. Prossegue Loureiro:
Rosa polemiza com ele dizendo que a social-democracia é o próprio movimento da classe operária. Massas em movimento e partido socialista estão identificados, não tem uma vanguarda que leva a consciência de fora. No caso de Rosa não há dicotomia entre vanguarda e massas, dirigentes e dirigidos; no caso de Lênin essa separação é bem clara, e isso é dito com todas as letras, e por quê? Porque a experiência histórica dos dois é diferente. Rosa está vivendo na Alemanha – que tem um grande partido socialista de massas, e Lênin está vivendo na Rússia – onde existe um Estado absolutista, que não permite partidos políticos e os revolucionários têm que ter um partido clandestino. São situações totalmente diferentes. (p. 76)
Diferentes, embora confluam na clandestinidade. Novamente Mendes de Almeida, acerca da “teoria de organização do partido de vanguarda, cujo eixo fundamental é a separação rígida entre os militantes e a massa”, construída em Um passo adiante e dois atrás, de Lênin (1903):
Essa teoria partia do pressuposto de que as massas ainda estavam sob o domínio do reformismo, lideradas por políticos burgueses e pequeno-burgueses, ainda não tinham a consciência socialista correspondente à que tinham os militantes. (apud Loureiro, p.62)
Coggiola, imbuído do espírito trotskista, corrobora:
Na brochura de Trotsky, a crítica mais forte se referia ao fato de Lênin (seguindo Kautsky) ter sustentado que a intelectualidade revolucionária desempenhava um papel especial no movimento revolucionário, dotando-o da perspectiva marxista que os operários não poderiam alcançar por si mesmos. Trotsky via nisso uma negação das capacidades revolucionárias da classe operária e uma aspiração da intelectualidade, cujo porta-voz seria Lênin, para manter o movimento operário sob a sua tutela. (p.192)
Não é de hoje, portanto, que, a cada direito do qual abrimos mão em nome de uma pretensa Vanguarda, a cada liberdade individual que entregamos de bandeja, mais aumenta o poder dos tais pouquíssimos decidirem as vidas de todos por nós. Quase 120 mil páginas ignoradas, tantas mulas, bestas quadradas, lá e cá, e toda uma tribo de Yanomamis apagada do mapa, efeito e causa borboleta, o antirrascunho do que preferimos reescrever em linhas tortas sobre o que já era escrito (a fincar pés de coerência em diálogo com erros históricos) e que hoje volta para nos atormentar. A barbárie de Daniel Silveira, no Brasil, reproduzida por Simon Gwynn, nos EUA. E nem um mísero pio. Ontem, “pro-choice”. Hoje, “pro-life”. Vice-versa, sempre. A barbárie incoerente das aspas, o barbarismo das tantas aspas da “vanguarda”.
Tendemos a imaginar o mundo, e Nietzsche não deve estar nada contente, como se uma saga intergaláctica e maniqueísta como havia muito não se via. No mundo real, porém, é sabido, não há uma única força na luta pelo poder. São vários os fascismos. Uns, do mesmo lado; outros, conflitantes. Há um terceiro elemento implícito em “socialismo ou barbárie”. Não se trata de socialismo versus barbárie, para começo (ou fim) de conversa. Mas da barbárie como resultado do não-socialismo cooptado, hoje, pelo capitalismo neoliberal globalizado, este sim causa e mantenedor da pirâmide, do fosso, que, por sua vez, leva (levou) à barbárie, à guerra, aos demais fascismos.
E o internacionalismo libertário de Luxemburgo nos ensina que não podemos jamais perder de vista o fascismo global, o que se esconde por trás das não-bandeiras. Sob pena de acabarmos sendo controlados de modo irremediável por “fascistas do bem”. Malcolm X alertou – caros liberais, não o levem a mal:
Há muitos brancos tentando resolver o problema, mas você nunca os vê sob a pecha de liberais. Aquele branco que você vê se autoproclamando liberal é a coisa mais perigosa em todo o hemisfério ocidental. É o mais traiçoeiro de todos, é como uma raposa, e uma raposa é sempre mais perigosa na floresta que o lobo. Você pode ver o lobo vindo, você sabe quais são as intenções dele, mas a raposa vai lhe enganar. Ela chega com a boca aberta de um jeito tal que, mesmo vendo os dentes dela, você pensa que ela está sorrindo e a toma por sua amiga. (Tradução nossa)
Daí a importância de se dar nome aos lobos, às raposas de modo geral. E às flores. “O inverno nunca esteve tão próximo”, escrevi em outra ocasião. Pois chegou. Faz tempo. Resistamos. Precisamos resistir. Gerhard Dilger que o diga, ligeiro retoque meu:
“Que a força de Rosa Luxemburgo esteja”. Seja. Conosco.
A primavera virá.